Saturday, December 27, 2008

Popota ou Leopoldina

- Comias mais depressa a Popota ou a Leopoldina?

- Quem?

- As bonecas dos supermercados, qual é que comias?

- Comia, como assim?

- Comias, pá, com qual é que querias coiso e tal em primeiro lugar; qual é a que gostas mais, queres que te faça um desenho?

- Um desenho da Popota? Mas a Popota não é um desenho?

- Pá, vamos lá ver se a gente se entende: há duas bonecas que andam ai nas promoções dos supermercados e nas acções de solidariedade, uma delas é uma hipopótama, a Popota, a outra é uma avestruz, a Leopoldina. Qual é que comias primeiro?

- O feminino de hipopótamo é hipopótamo fêmea, acho que não se diz hipopótama.

- Pronto, está bem, já cá faltava o espertinho. Mas e então: qual é que comias?


- Acho que a Leopoldina, carne de avestruz parece-me melhor do que de hipopótamo.

- Chiça, que é burro! Não estamos a falar de comer bifes, mas sim de comer, de levar para a cama!

- Ah, mas se for para comer bonecas, prefiro a Jessica Rabbit, que ao menos parece uma mulher, tu não?

- Pá, não se pode falar contigo. Olha, eu comia a Popota, já que queres saber.

Pais natais, a gente é que sabe

Destas noites de Natal chega-me uma tristeza qualquer que se mede pelo número de luzes. Muitas luzes são boas, poucas luzes são piores que más, são a coisa mais triste do mundo, como fiozinhos de alegria fingida pelas montras, pendurados num candeeiro de parede de restaurante, ou bolinhas que já sobraram de dez natais.
Mas é quando chego a casa e a tua aliança que parou de rolar precisamente junto à nossa fotografia ali no móvel, sorridentes de antes, antes eternos, não sei como a tua aliança ficou lá em casa e como foi rolar até ali. Não sei sequer, nem quero imaginar, como te saiu a aliança do dedo em primeiro lugar. Para mim é o anel de Sauron.
Este natal vazio de que me lembro, de luzes que piscam nas varandas dos outros e pais natais pendurados em escadas – acho piada aos pais natais pendurados em escadas, muito mais do que a luzes -, vazio aqui dentro, os livros agora deitados nas prateleiras quando antes estavam em pé, agora desamparados pelos que levaste para a tua casa nova e eu fiquei aqui com o que não levaste. Não me levaste a mim. Parece que também eu estou caído numa estante.

Mas esse natal de que me lembro não é este agora em que estás de volta. A nossa foto que nunca saiu dali e a aliança outra vez no teu dedo. Não me levaste a mim, mas voltaste. E o melhor de tudo é que aqui não temos luzes, talvez tenhamos um pai natal pendurado ali fora na janela e eu nem saiba, talvez. É isso que trazes, essa possibilidade das coisas lá fora na janela. Estas conversas que temos: pais natal ou pais natais? parece que pais natal mas concluímos que não devia ser, que pais natais soa bem melhor e são estas vontades de errar que nos unem.
As estantes outra vez cheias, os livros encostados uns aos outros outra vez, lombadas que são espinhas dorsais. Os discos, os discos também, todos outra vez numa festa de natal. As coisas que enchem e esvaziam estas estantes, aparentemente aos ritmos do natal. As coisas que enchem e esvaziam estas estantes, enchem e esvaziam, assim, mil vezes repetido, enchem e esvaziam, enchem, esvaziam, são marés-cheias e vazias na praia da nossa vida. Tanto são as insuportáveis luzinhas da alegria como pais natais - claro que pais natais - pendurados a querer entrar.

Monday, November 17, 2008

Ela tão triste

Ela queria compor a música mais triste de sempre, que só por si despressurizasse. E ouvia Down in a hole de Alice in Chains e logo Mother de Pink Floyd, repetidamente pela noite dentro e pela noite fora, que são estranhamente a mesma coisa no que respeita às noites; logo as noites só podem ser uma fronteira sem fora nem dentro, um caminho a seguir sem lados; enquanto as velas de chamas negras no seu quarto lutavam por espaço no negrume do próprio ar e os cheiros do frio dezembrês chegavam uninvited da janela e a anestesiam a cada inspiração.

Dedilhava na guitarra como quem tocava feridas, doíam-lhe as cordas nas pontas dos dedos bem como lhe doíam os sons nos ossos, um distorcer que só existe na música, porque distorcer, fora da música, é forçosamente endireitar.

Apenas a música mais triste de sempre e de repente o Down in a hole e o Mother a tocarem ao mesmo tempo em rádios diferentes

Down in a hole and I dont know if I can be saved

Mother, do you think they’ll drop the bomb?
Mother, do you think they’ll like this song?

See my heart I decorate it like a grave
You dont understand who they
Thought I was supposed to be
Look at me now a man
Who wont let himself be

Mother, do you think they'll try to break my balls?
Ooooowaa mother, should I build a wall?

Down in a hole, feelin so small
Down in a hole, losin my soul
I'd like to fly,
But my wings have been so denieeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeed

como se juntas formassem uma coisa mais triste ainda. Será que duas tristezas se juntam numa mesma ou uma ocupa o lugar da outra? E as lágrimas que lhe iam correndo pela cara sem saber porquê, que como escreveu Saramago eram um sangue branco. Não há certamente melhor maneira de dizer isto: sangue branco.

Havia ali um conforto de estar triste que não pode ter explicação, uma dor de solidão, um ar pesado à volta, um ar empedrado que nem respirado se suavizava, que não se partia, um ar irrespirável é um ar morto.

Apenas a música mais triste de sempre. Deveria ser tão fácil de tão triste que ela estava e de mais triste que desejava estar ainda. Era uma entrega à tristeza para poder ter a tal música. Mas nada. Aquele desejo de estar triste foi plenamente conseguido e nessa obtenção de tristeza estava toda uma alegria alcançada que deitava tudo o resto a perder. Querer estar triste e conseguir dá nisso: na alegria de o ter conseguido.

Era para ser a música mais triste de sempre, mas jamais ela pensara ser tão difícil criar assim, como o Down in a hole ou como o Mother, uma tristeza que tocasse a todos sempre que escutada num rádio, escrita por alguém que queria estar triste e nem isso deve ter conseguido.

Sunday, November 16, 2008

Nomes fodidos

Coito Pita, um dos vice-presidentes do Grupo Parlamentar do PSD/Madeira, apresentou o seu pedido de demissão do cargo.

Segundo informações recolhidas pelo nosso jornal, as razões para que Coito Pita assim o tenha feito prendem-se com matérias de natureza privada. Ainda assim, porque o privado é chato, tentámos obter esclarecimentos junto de familiares de Coito Pita, nomeadamente de um dos seus muitos primos, Queca Rata.

«Pelo que sei o meu primo Coito Pita estava farto das más-línguas», adiantou em breve conversa telefónica sem, todavia, aprofundar.

Neste sentido, atendendo aos arrepios que Coito Pita provocou no seio do referido grupo parlamentar, auscultámos igualmente a prestigiada opinião do professor Relação Sexual Vagina, eminente figura da política regional e desde há muito próximo de Coito Pita.

«São questões preliminares, distantes do propósito do momento. O que realmente se passa é que Pita está tão simplesmente fechado para a actividade», explicou.

Para a vaga de Coito Pita deverá agora adiantar-se um dos seus rivais na assembleia legislativa, homem da mesma tez política porém com outro entendimento sobre aberturas estratégicas: Trancada Pipi.

Pipi que, de resto, fazendo inclusivamente lembrar declarações exaltadas do controverso Foda Cona aquando da demissão deste em 2003, não se conteve e referiu-se à saída de Coito Pita sem meias palavras.

«Estava com certeza farto que lhe fodessem o juízo», disse Trancada Pipi.

Wednesday, November 12, 2008

Songs from the film Help

O doente sentou-se na cadeira de plástico e procurou entre os papéis da mesa um espaço para os cotovelos.

- Doutor, o que se passa comigo é que era uma vez uma grande ideia de que nunca alguém se tinha lembrado. Por isso a ideia foi-se embora, desiludida consigo mesma por nunca se ter conseguido mostrar. E depois, doutor, depois de se ter ido embora para sempre dizem que morreu sozinha num sítio muito sozinho.

- Meu caro, temo não estar a ver onde pretende chegar, julguei que lhe doíam as costas.

- Tudo o que restou dela é um singelo começo, uma memória, uma expressão «era uma vez». E desde a morte dessa grande ideia todos quantos começam uma outra começam com era uma vez, doutor, à espera que a sua seja a certa, tentando chamá-la, à procura. Mas eu acho, doutor, que nunca ninguém conseguiu lembrar-se dessa ideia, essa ideia que ninguém conseguiu salvar do abismo das outras coisas sempre iguais. Doutor.

- Você está bêbado?

- Dizem os médicos, diz você, doutor, que o álcool não pode trazer criatividade, que pelo contrário. Provoca no corpo uma libertação, doutor, que nos torna disponíveis e confiantes para criar. Tudo bem, doutor, doutor, aceito isso de estar bêbado, tudo bem, doutor, aceito, o doutor sabe que eu aceito. Aceito até, se o doutor quiser, que o Revolver, o Peppers, o Rubber... aceito, doutor, que teriam sido melhores se Lennon e McCartney estivessem sóbrios. Mas diga-me lá, doutor, você que não está bêbado, doutor, poderiam os Beatles ter sido melhores?

Saturday, November 8, 2008

Carta a quem me roubou o Fiesta

Caríssimo,
a frio lhe escrevo pois semanas se foram desde que me estilhaçou o vidro do Ford Fiesta na Rua das Taipas, ao Bairro Alto, para me desocupar o porta-luvas. Se porventura tivesse, então, beneficiado de qualquer ocasião para lhe escrever a quente certamente teria sido com um ferro em brasa para marcar varas e manadas.

Consigo, hoje, porém, percebê-lo. Partiu-me a janela do pendura e surripiou-me – porque ladrão que actua pelas calejas indistintas do Bairro não rouba, nem tampouco rapina, antes surripia - os cedês de bandas sonoras de filmes de Woody Allen. O que foi bem seleccionado, convenho. Aliás, jamais conheci ladrão que não se inspirasse com Take the A Train de Duke Ellington, faixa 18 do primeiro disco. Deixou-me – muito obrigado - um cedê de Rufus Wainright e isso eu também percebo, porque ainda que lhe reconheça talento não sei se é coisa que se queira ao ponto de pedir emprestado sem autorização e para sempre. E digo-o assim, com esta expressão, porque você, como usurpador, só merece eufemismos que lhe atenuem a camelice. O que me constrange acima das outras coisas é que não tenha levado o livro daquela gavetinha ao lado do banco, o Almas Mortas de Nicolau Gogol. Não é tão divertido como O Nariz, eu sei, mas se há livro para si é aquele que, justamente, não levou.

Também aqui há semanas – aproveito para lhe dizer, afinal se me rouba é porque temos gostos comuns e nada impede que possamos um dia ser amigos - fui a Berlim e ao ver um grupo de executivos à saída do Deutsche Bank senti que me roubaram no spread sem sequer me olharem; e esse roubo, atente bem, não é mero roubo, nada disso, é filhadaputice, coisa a sério, são ladrões de classe, que roubam mesmo quando os outros estão a ver e sabem o que eles fazem. Mas é quando me entram no Fiesta, a diesel – que é, já agora, quase tudo o que eu sei efectivamente dizer sobre as características do meu carro: que é a diesel; além de que para entrar uso uma chave e não parto o vidro – que me esfarelam a intimidade. Julguei que mais depressa me levaria o Almas Mortas do que o livro técnico onde costumo ver a pressão dos pneus e descubro, como num mapa, o tesouro que é o maldito canto escondido da caixa de fusíveis. Pior: junto às mudanças havia um relógio, um swatch de 80 euros. Você não o levou e desde já lhe digo que se esperava um rolex num Ford Fiesta, meu caro, você, evidentemente, limita-se mesmo a surripiar. Mais: é tão básico no que faz que o melhor da sua profissão é que, porque trabalha nas ruelas e não num banco berlinense, ninguém o pode ver a trabalhar e pode assim continuar a fazê-lo na sua invisível estupidez.
Espero que esta carta não vá já demasiado longa, detestaria roubar-lhe tempo.

Sunday, August 10, 2008

Chinesinhas

Mexem comigo as chinesinhas aos saltos nos tapetes azuis, julgo que vão sair dali a disparar numa fúria qualquer, levadas pelo vento até que alguém as apazigúe. Em dias de nada para fazer, salto, eu próprio, encarpado para o sofá e fico a ver. Com o televisor nos olhos, como escreveu Mário de Carvalho.

Acredito que tudo pode acontecer nos Jogos Olímpicos e fico à espera que um nadador nos apareça de braçadeiras, de um gordo que faça uma bomba na piscina de saltos ou de um halterofilista borrado num esgar de força.

O que aprecio mesmo, porém, é um atirador português chamado Nuno Pombo.

Aliás, qualquer modalidade de tiro, à partida, me desperta o olimpismo. Sobretudo tiro com arma de caça, pela essência de energia, pela pureza inquestionavelmente desportiva.

Ao ver os chineses redundantemente a amealhar medalhas confirmo a minha suspeita de que há oito anos estavam guardados em frascos à espera do 8 do 8 de 2008, para dos frascos saltarem super homens e mulheres, ganharem tudo e desaparecerem de seguida, esquecidos pelos excessos e enriquecimentos, como heróis de Gotham em Pequim e Xangai, vestidos de morcego, sem saberem se são bons ou maus, ou Maos, nas cidades onde, pelo que contam, o sol é só uma luz clara cujos raios se espalham por uma só nuvem. E de noite o sol é um néon.

Ressaco de futebol, claro, snifando escondido futebóis de praia, injectando particulares em vielas e amigáveis em caves de casas de jogos, sentindo-me capaz de cair um dia num qualquer torneio de matraquilhos, talvez, do Café Central de Castro Daire.

Dou por mim a ver as chinesinhas aos saltos em alucinados tapetes azuis, como se fossem chinesinhas heroínas de um futebol qualquer a festejarem golos que ali só eu vejo.

Sunday, July 20, 2008

Princípios das putas

Penso que é altura de voltarmos a abordar temas que realmente importam: putas que não dão beijos na boca. A questão da puta com este nível de princípio é de uma profundidade que merece reflexão.
Parece-me evidente concluir, desde já, que não se trata de uma questão de privacidade ou intimidade. O aluguer de intimidade é, afinal, o negócio da puta. É mais lato, é matéria da sociologia das profissões.

Sinceramente, sou a favor. Se a vida me tem levado a ser puta, julgo que também não beijaria na boca. Esta, arrisco, é a fronteira entre as que são putas e aquelas que podem chamar-se prostitutas. Toda uma categoria profissional em causa. É mais puta aquela que beija muitos na boca e nada mais, ou a outra cuja única fronteira corporal que impõe ao desejo alheio é a própria boca, e apenas se invadida por outra boca?
Acho que a primeira. A segunda é só mais prostituta.

A questão foi, e oportunamente, quase há 20 anos, trazida a público no filme Pretty Woman, com Julia Roberts e Richard Gere. Com a evolução do mercado da satisfação e variação sexual, a prostituta colocar-se-á, creio, gradualmente no seu patamar superior ao da simples puta. É a tendência a afirmar-se.

De resto, a demarcação de espaço que é feita pelo simples facto de não haver beijo na boca é perfeitamente compreensível. Eu, que nem puta sou, vou ao barbeiro cortar o cabelo, sim, mas jamais deixarei que me façam a barba, é algo que me incomoda, ora por ter medo que me cortem o pescoço, ora por sentir um certo incómodo com a intimidade quase sexual do gesto; é, no fundo, uma carícia de navalha.

E mais: eu, que, repito, nem puta sou, escrevo tantas vezes e tão poucas vezes sobre mim.

Sunday, July 6, 2008

Voltar às coisas que se foram embora

Volto a escrever aqui passadas muitas semanas, tantas que por momentos admiti que este aqui já nem existisse. Mas como ainda cá está, volto a escrever aqui.
Voltar depois de semanas fora é como perder lugar no espaço. Tudo o que era meu pareceu-me ligeiramente fora de sítio nos primeiros dias após o regresso, lá, sim, mas fora do sítio, como se mal arrumado na cómoda ou como um par de sapatos no meio da sala. Demora meia dúzia de dias até tudo estar outra vez onde estava quando saímos.
Há, porém, uma mudança permanente. Um cão de 14 anos, comigo desde os 14 aos 28, que morreu de velho enquanto estive fora, na casa dos meus pais. Dos 14 aos 28.
Já tinha dado sinais de crise antes da minha partida, tantos que a minha mãe, à despedida, se admirou pelo facto de eu não me lhe ter feito uma última festa de adeus. «As despedidas separam as coisas por definição», pensei eu, não me despedi.
Deixou de andar, começou de um dia para o outro a respirar com sofrimento e contam-me agora que a veterinária o considerou um herói, que viveu mais anos do que o normal, que era o animal mais velho da clínica e que todas as médicas o admiravam pela resistência.
Eu a pensar nos espaços que mudam e a ser traído pelo tempo. Já devia saber que são exactamente a mesma coisa.

Monday, June 2, 2008

Nada aqui (outra vez)

Já não escrevia aqui no blog julgo que há mais de um mês. Porque nada me surgiu e julgo, sinceramente, que sou daquele tipo que quando nada me surge para escrever é porque estou meio morto. Se calhar andei meio morto, a julgar que vivo.

Noutro dia eu mesmo disse a um amigo: é pá já não escrevo no blog há bué. E ele: pois é, pois não escreves.

Depois dou por mim a pensar nas coisas da existência - sou assim, eu, de uma profundidade de abismo - e reparo que há tanta coisa que não existe. Diria mesmo, filosoficamente falando, que pouca coisa existe - também sou assim, eu, de uma filosofia superficial. Um objecto não é. Se não tem consciência da sua existência, não existe, só o é para mim.

E eu, que quando nada me ocorre para escrever, que nem objecto sou, sou o quê quando nem sequer existo?

Sunday, May 4, 2008

Beatles e LSD, Toni Carreira e GHB

É tão célebre quanto chato – porque é daquelas coisas que quando alguém descobre passa a vida a dizer a todos os outros que entretanto já sabem – a suspeita de que a Lucy in the Sky with Diamonds foi uma referência dos Beatles ao consumo de LSD.

Agora, que Toni Carreira usasse as canções para incentivar o uso de GHB, estupefaciente que pode diluir-se nas bebidas, eu desconhecia. Ainda que a maior parte das pessoas possa achar algo assim normal, a mim, sinceramente, perturba-me. Eu sei que são outros tempos, tanto para a música como para o consumo de químicos depressores com acções psicadélicas. Mas perturba-me.

O GHB é sobretudo usado por quem pretende aniquilar meninas em discotecas e esta canção a que me refiro, Cai nos Meus Braços, Maria, do referido artista, valha-me Deus se não é para esconder uma coisa do género, o uso e abuso de uma substância que deixa as raparigas desinibidas, tontas e, imagine-se, abrandamento do ritmo cardíaco. Ficam, no fundo, como coelhos. Ficam tharn, para quem preferir o idioma Lapine do Richard Adams no Watership Down.

Os Beatles sempre desmetiram a lenda do LSD. Acredito que Toni Carreira, no fundo, também nunca terá pensado nesta associação que eu próprio estou a fazer. Mas é assim que nascem os mitos. Daqui a quarenta anos alguém dirá a alguém: «Pá, sabias que a Cai nos Meus Braços, Maria do Toni Carreira era uma referência ao uso de GHB?»
E alguém responderá: «Tafoder mas é com essa conversa, já toda a gente sabe disso! Mas onde é que tu andaste nas últimas décadas, dentro de uma caixa a respirar por dois furinhos?»

Ora vejam:
Tu que estás aí dançando
Faz aquilo que eu desejo
Vem para mim bamboleando
Sim, tropeça nos meus beijos
Tu entra na minha vida
Faz com que seja o meu dia
Vem, vem de fogo vestida
Por mim fica perdida
Faz minha fantasia
Cai, cai cai, cai nos meus braços Maria

Wednesday, April 30, 2008

South Park, muito muito obrigado por estas e por outras

«I just don't trust anything that bleeds for five days and does not die»

Sala de não estar

- ora bem, temos aqui o segundo quarto, que como podem ver é maior que o primeiro e tem a varandinha. E aqui ao fundo a sala de não estar.

- desculpe, disse a sala de não estar?

- sim, é um conceito novo, é por isso que a casa é um bocadinho mais cara.

- mas como assim?

- a sala de não estar é, como o nome indica uma sala a evitar.

- mas serve para quê?

- para não estar, ao contrário de uma banal sala de estar. Mas essa vocês já viram.

- sim, claro, a sala de estar. Mas para que raio preciso eu de uma sala de não estar?

- bem, como me parece evidente, é uma sala onde não precisa de ir, não tem de se preocupar com isso. É uma vantagem. Olhe bem lá para dentro, mas não passe daqui da porta atenção. Veja: nada se passa nesta sala, que silêncio invejável, que descanso. Eu tenho uma assim no meu apartamento.

(a mulher interrompe a conversa e diz para o marido: João, vamos embora que este gajo é maluquinho, vá, anda, vamos ver a outra no Cacém)

Sunday, April 13, 2008

Os olhos não têm idade: que estupidez

Aos 14 vens cá a casa lanchar e estudar para o teste. Nunca gostei tanto de trigonometria. És um co-seno, eu um seno. Apresso-me a esconder no meu próprio quarto qualquer vestígio de mim. Tudo em mim me envergonha aos teus olhos verdes: procuro qualquer coisa que te impressione para colar na parede. Quero gostar do mesmo que tu. Quero que me sintas mais velho, experiente.

Aos 42 procuro-me exactamente. Quero que me entendas como homem, não como pai ou filho. E ver-te a ti assim também, mulher, não mãe ou filha. São idades delicadas: qualquer entendimento mais para cima ou para baixo, mais para velho ou novo, nos pode afastar como estradas num cruzamento.

Aos 81 quero esconder de ti qualquer sinal do tempo. Guardo os relógios da casa e dos pulsos. Peço ao sol que não trace cones de luz pela janela, para que não detectes as horas que só batem desta forma aqui na sala. O sexo que morreu e é hoje um desejo vago, apenas uma brisa que passa numa fotografia que é um buraco no tempo em cima da cómoda, nós bronzeados na praia, cheiramos a atracção um pelo outro, temos olhares de animais. Estico as peles dos braços quando me dispo para vestir o pijama, abro os olhos para que se tornem maiores se calhas a olhar-me fixamente, falo mais alto para te soar forte. Quero ser novo para ti outra vez.

A minha idade, mulher. Desde os meus 14 anos que conto a minha idade pelos teus olhos e ainda noutro dia li num livro que os olhos são a única coisa sem idade.

Wednesday, April 9, 2008

Discutia com um amigo as diferenças entre cagar e foder. Claro. Apressei-me a esclarecê-lo, sapientemente:

- Foder é uma designação ordinária para definir uma relação sexual, quando o pénis entre na vagina e ...

Ele interrompeu-me:

- Eu sei o que é foder, pá!

Deixar uma explanação a meio é para mim quase ultrajante, não posso parar:

- ... e cagar no fundo é uma necessidade fisiológica de excreção e...

Ele bateu com a mão no tampo da mesa, salpicou-me de café e foi-se embora. As outras pessoas na esplanada repararam. Tenho alguns amigos sem maneiras.

Ainda assim, aqui fica a explicação que ia dar-lhe, em quatro simples tópicos orientadores.

Do prazer

Ambas as coisas são, penso, reconhecidamente agradáveis. No que à primeira respeita, desde os preliminares ao orgasmo há todo um sentimento de evolução que resulta em libertação. No que à segunda respeita, também.

Ora vejamos – e aqui vou entrar em aspectos da minha vida privada que espero não vos ofendam os bons costumes: gosto de levar um livro, de ficar a ler até que finalmente me lembro do verdadeiro motivo que ali me levou e de sentir o alcançar de um propósito.

Da necessidade

Cagar é uma necessidade fisiológica, incontrolável. Quem não quiser cagar, acabará por se cagar inevitavelmente. É melhor cagar do que cagar-se.

Já foder é uma urgência natural, mas não tão incontornável. Empregando uma linguagem corrente no meio filosófico: o foder é necessário, sim, mas o cagar é forçoso, é o que não pode deixar de acontecer.

É por isso que foder é encontrar e cagar é perder. Contudo, de ambas as coisas se pode, de facto, retirar o gosto de um alívio. Assim de repente, no que a alívios concerne, tanto foder como cagar equivalem ao último lance de uma final europeia em que estamos a ganhar 1-0 e debaixo de insuportável pressão e um defesa nosso saca uma bola de cima da linha de golo.

Da ausência

Quem passa grandes temporadas sem foder chega ao ponto de dizer que deixa de lhe sentir a falta. Confesso que nunca estive muito tempo numa penúria de tal ordem – afinal, parecendo que não, onze anos, quatro meses e três dias passam num instante – mas acredito.

Aqui é evidente a diferença relativamente ao cagar: ninguém sente vontade de voltar a cagar, excepto se questões do foro da prisão de ventre nos provocarem uma certa abstinência forçada.

Da mistura

Vi num sítio chamado internet que há gente que misturas as duas coisas ao mesmo tempo, enquanto uma e outra decorrem, e, por incrível que pareça, em simultâneo: cagar e foder.

Perdoem-me, todavia há coisas de que não falo sem a presença do meu advogado.

Wednesday, April 2, 2008

Filho DA puta, filho DE puta ou FILHA da puta?

Ia para ofender um determinado ser num dia destes, quando o meu cérebro parou para congeminar a melhor ofensa possível dentro de um fim que era o por mim desejado: chamar-lhe seu grandessíssimo filho da puta. Enquanto parado analisou todas as diferenças possíveis dentro de uma ofensa com estes parâmetros. Vejamos:

Filho da puta: um clássico. Pretende-se, simplesmente, atribuir má fama à mãe do visado. Depreende-se que a progenitora do sujeito era prostituta e que o deu à luz sendo este, logicamente, filho da puta. Parece-me evidente.

Filho de puta: variante mais ofensiva do que a clássica. Enquanto filho da puta é perfeitamente determinado – é filho da puta, daquela puta, de uma puta que se sabe quem é e que, em casos mais avançados, podé até ser denominada –, a expressão filho de puta é claramente mais marcante. Um filho de puta é filho de uma puta qualquer. É como saber que a mãe é puta mas ser essa, no fundo, a única informação disponível sobre uma mãe que, a bem dizer, não se conhece. Mais do que ser filho da puta, o filho de puta é filho do próprio acto de prostituição, é um filho do conceito.

Filha da puta: a alternativa com variação de género. Inicialmente poderá induzir o visado em erro: «Mas eu sou um homem e este magano está a chamar-me filha da puta?». Mas não há aqui qualquer erro, é um ataque perfeitamente deliberado. Apelidar um vulgar filho da puta de filha da puta pode ter duas interpretações. Há, aliás, duas escolas de ensinamento da matéria.
A Escola Homofóbica entende a ofensa como uma clara tentativa de magoar duplamente o visado que, com a expressão filha da puta, será em simultâneo filho da puta e homossexual, uma vez que o seu género foi deliberadamente confundido pelo ofensor.
Circula, no entanto, outra escola, a Geracional, ramo que, mais ligado ao vocabulário de rua, entende a passagem de filho para filha como uma questão de descendência. Isto é: a mãe do ofendido era tão puta que o filho, mesmo sendo homem, é, como a mãe, também ele um pouco puta e por isso é ofendido como filha da puta. Resumindo: é ser filho da puta e puta coincidentemente.

Assim que o meu cérebro voltou a trabalhar acabei por não lhe chamar nada porque no final de contas sou de uma educação inatacável.

Saturday, March 29, 2008

Thursday, March 27, 2008

12 palavras macacas

Lançaram-me e laçaram-me com um desafio do blog da Ensaimada que podem ver ali ao lado na minha lista de blogues nices. Querem que escolha doze palavras preferidas. Por mim tudo bem. Cá vão.

1- Renuído. Aquele gesto que se faz a abanar a cabeça para dizer que não.

2- Garrano. Que é um cavalito.

3- Amíude. Porque passei a vida toda a cantar «De Lisboa a Bragança são nove horas de distância, queria ter um avião para lá ir mais a miúda». Até que percebi que afinal era amiúde e não a miúda. Mas continuo a cantar mal.

4- Foda-se. Porque me serve, como para toda a gente, para uma coisa boa ou má. Posso marcar o terceiro golo ao rival num jogo decisivo ainda antes da meia-hora, levantar-me e gritar foda-se em vez de golo. Mas também posso dizer foda-se quando sofro golo. O futebol, no fundo, pode ser uma sucessão de foda-ses.

5- Ergasiotiquerologia. É o ramo da Medicina e do Direito que cuida dos acidentes do trabalho, das doenças profissionais e suas consequências.

6- Cona. Às vezes tenho mesmo de ser terra-a-terra, é a vida, desculpem lá. Porque cona é uma palavra que soa mal mas é de longe a mais utilizada para nos referirmos a ela e logo é um termo que merece ser homenageado. E, além do mais, qualquer outro termo é absolutamente inutilizável. Cona é um termo resistente num meio onde não há meios-termos. Qualquer outro, ou é ainda mais terra-a-terra, diria mesmo que subterrâneo, e logo indelicado, ou então é cientificamente absurdo: vagina, ou mesmo vulva, caso nos estejamos a referir a todo o, digamos, complexo. Sou um teórico.

7- Anticonstitucionalicimamente. Porque é a maior palavra em português e porque, se calha a ter a cabeça numa tigela cheia de ovos, com tanta volta que dei à língua até a conseguir dizer teria batido claras em castelo.

8- Carruajar. É andar de carruagem. Nunca carruajei, que me lembre.

9- Keewatiano. Divisão estratigráfica correspondente às formações mais antigas do Pré-Câmbrico canadiano. Mas é uma palavra que raramente uso. Se a uso, vá, uma vez por semana é muito.

10- Mainada. Que no fundo junta as palavras mais e nada numa só e uso quando apoio uma ideia, geralmente sócio-política. Exemplo: Alguém diz: «Acho que Weber postula a definição de estado que se tornou essencial no pensamento da sociedade ocidental. O estado como entidade que possui o monopólio do uso legítimo da acção coerciva. A política, se queres que te diga, deverá ser entendida como qualquer actividade em que o estado tome parte e de que resulte uma distribuição relativa da força.» E eu: «Mainada»

11- Fuínha. Gosto do efeito que tenho de dar para dizer o i. Fuííííínha.

12- Refego, que são aquelas dobras nos gordos e que são particularmente engraçadas nos bebés e no boneco da Michelin.

Tuesday, March 18, 2008

— Caro doutor Pinto da Costa, gosto tanto de si, acho-o um homem tão charmoso, uma espécie de figura paternal para uma menina frágil como eu .

— Quando morreres, minha querida, o teu cadáver será igual ao de todos os outros. Irás apodrecer e toda a beleza que hoje tens de nada te valerá. Os ritmos de putrefacção serão os mesmos para qualquer um de nós.

— A sua barba branca, tão natalícia, caro doutor, é para mim um refúgio, acho que é amor o que sinto por si.

— Só o dizes porque ficaste impressionada ao ver-me na televisão a protestar contra aquela autópsia a um extraterrestre, quando me rebelei contra a palhaçada e disse, afoito: toda a gente sabe que não é daquela maneira que se serra uma cabeça!

— Confesso, doutor. Deste então não consigo parar de pensar em si a meu lado. Venha, meu querido, acompanhe-me à esplanada para tomarmos um refresco. Que me diz a um sumo de laranja?

— Laranjas... já te disse, minha pequena, que faço autópsias como quem descasca laranjas?

— Ó doutor, você estraga-me de mimos.

Saturday, March 15, 2008

Cambada de selvagens

Uns ventiladores, um tubo de chaminé e umas latas vazias com restos de tinta amarela, pintada por dentro. O parapeito de cimento a toda a volta do telhado deste prédio de 25 andares. Lá em baixo ficou a cidade e ali na entrada de metal um guarda que me viu subir as escadas pela calada tenta abrir a porta que eu barriquei com um tanque de lavar roupa e uma chapa de zinco.
Disparo contra a porta para que ele se cale do outro lado e ouço-o descer a escada aos gritos.

- Um selvagem, você é um assassino e um selvagem, vou chamar a polícia já!

Sentado no parapeito tiro o cavaquinho da mochila. Tem um som arranhado, soa-me como quatro guitarras. O vento ajuda-me a dedilhar e assobia entre os meus acordes.
O Sol é uma lanterna apontada à minha cara, que me interroga. O céu não tem cor, o seu azul é uma mentira que reflecte o mar. Ouço agitação lá em baixo na estrada, mas não olho, ouço gritos e uma sirene. Pego na pistola outra vez e disparo. Ouço mais gritos e parece que o sol me aquece mais a cara, inspiro cheiros que chegam de longe, de um sítio qualquer depois do mar, onde ainda ninguém foi, nem pessoas nem caravelas, sem índios, sem costumes, só os cheiros selvagens de coisa nenhuma. Inspiro o mais que posso até que o ar me encha o suficiente para voar daqui.

E grito. Daqui de cima ninguém me ouve e o mais libertador dos gritos, acho, é precisamente este que mais ninguém ouve. Um grito só é verdadeiramente de alguém se mais ninguém o escutar.

Parece que vem ali um helicóptero, há um flap flap flap que corta o meu amigo vento às fatias. Disparo para o helicóptero mas não me parece que lhe tenha acertado.
Sou um selvagem, disseram-me, largo a pistola e o cavaquinho e cheio de ar corro e salto. Empurrado pelo vento, voo entre o espanto da multidão, inesperadamente presenteado pela natureza por este meu estado selvagem.

Tuesday, March 11, 2008

Escrever o nome

Escrevo o teu nome num papel, escrevo, escrevo, as letras são cicatrizes no corpo branco da página. O teu nome várias vezes, vezes seguidas, a mesma palavra para sempre forma novas palavras, novos sons que soam ao contrário, rapidamente no meu cérebro.

Escrevo, escrevo. A primeira coisa que aprendi a escrever foi o meu nome. A última coisa que escreverei será o teu. Agora que me vou embora, que me dizem que tenho de me ir embora, que me contam o tempo, que o meu tempo conta sinistramente até ao fim, não posso nem quero levar-te comigo. E por isso escrevo o teu nome num papel e gosto de o ler logo de seguida, vezes e vezes. Porque noutro dia, a ler este escritor – o escritor sou eu - aprendi que a única coisa que se leva verdadeiramente desta vida é aquilo que se lê; e que a única coisa que se deixa é o que se escreve. E por isso escrevo o teu nome, para que fiques cá para sempre enquanto eu tenho de me ir embora.

Escrever é o único pacto possível com o tempo.

Monday, March 10, 2008

Ontem nunca mais chega

Ontem o dia andou-lhe todo para trás. Começou exactamente quando ela se foi deitar, depois de se despir e vestir e o pijama, numa meia luz que escurece mais o quarto do que o ilumina. E uma meia música que chega do rádio, que adormece mais do que desperta. Na casa de banho penteou o cabelo, tirou a maquilhagem com umas almofadinhas redondas de algodão, ouviu-se correr a água pela louça.

À tarde falou-lhe ao telefone, disse-lhe que gostava muito dele e ele pigarreou, respondeu que não a podia ver mais tarde, que tinha outra vez trabalho, que tinha coisas.

De manhã ela jurou que jamais lhe voltaria a ligar desde que os dias fossem sempre assim, perfeitos quando andam para trás, dias que nunca desiludem. O tempo para a frente é um castigo, às vezes nunca mais chega o dia de ontem.

Friday, February 22, 2008

Um mês tem 30 noites

Tenho um problema com os dias. Acho que são favorecidos em relação às noites, que são mais importantes na contagem do tempo. Um mês tanto tem trinta dias como trinta noites e nós

- Então combinamos para dia 21, pode ser?

Nem respondo. Prefiro a noite 21. Prefiro fazer anos na noite 9 de Maio. Sou mais eu de noite. Quando tudo à volta escurece vejo-me melhor a mim, pareço aceso por dentro, desperto, tenho olhos amarelos que brilham ao longe, muito ao longe, para quem me vê dos sítios onde é de dia.

Wednesday, February 20, 2008

Cheira a tabaco na rua

Às vezes entro e saio dos prédios, dos restaurantes, das lojas, sinto agora fora dos sítios o cheiro a tabaco que antes sentia dentro deles. Cheira-me a fumo na rua.

Pergunto-me que cheiros tem a minha cidade e se não são os cheiros, mesmo os maus como o fumo, que a tornam diferente a partir do momento em que as suas esquinas me são tão conhecidas. E as suas pessoas.

Passa sempre um vento novo com aromas do Tejo, aqui, e do mar, ali, e um cheiro lento que saiu ontem de Sintra e só agora está a chegar para me deixar também verde por dentro.

É como o amor, é descobrir sempre um vento novo que passa no ombro de uma amante de sempre.

As vidas e as mortes dos cães e dos gatos

Jamais se enganava no lado para onde abria a porta do elevador. Havia duas no prédio, cada qual abria para seu lado, mas ele sabia sempre em qual estava, castanho claro, a pingar baba da língua depois do passeio a correr pela rua.

Ao dono diziam-lhe que o cão estava gasto, que os catorze anos que tinha eram na verdade multiplicados por sete, que o seu cão tinha 98 anos, era muito velho. Era uma espécie de tempo que passou mais depressa.

O dono respondia que dos gatos também contam que têm sete vidas e que se ele na verdade matasse um gato este morreria mesmo e não ficaria à espera de viver mais seis. Isso dos cães só podia ser mentira.

Até que um dia ao subir da rua, depois de a muito custo ter subido dois degraus da escada, passando lentamente umas patas e só depois as outras quando antes subia os degraus num salto, o cão enganou-se na porta do elevador. Era a que abria para a esquerda e ele ficou a olhar para o lado direito, com o focinho quase enfiado nas dobradiças.

Foi então que o dono percebeu enfim o tempo que o animal trazia consigo. Uma dor foram sete dores, o estômago torcido como se fosse um trapo que está molhado e se quer apenas húmido.

Começou nesse dia a dizer-lhe adeus, aos bocadinhos, a dizer-lhe adeus muito baixinho para as suas orelhas grandes, para ninguém ouvir, entre puxares de bigodes no focinho e olhares que os gatos não sabem olhar. Um adeus em que nenhum se vai realmente embora, em que ficam ali, com uma idade qualquer que não morre. Assim, quando o adeus vier mesmo, acreditarão que permanecem, num adeus a fingir, multiplicando a vida como gatos. Uma morte será apenas uma morte, nenhuma morte serão sete mortes.

Tuesday, February 5, 2008

Scorpion, depois do Mortal Kombat


Eles são palhaços mas não sabem do que riem. O ar são pintinhas às cores que me turvam a vista, mas não o pensamento. Do meu pulso sai uma lança amarrada a uma corda e trespassa o peito do palhaço do outro lado da rua. Assim que a minha lança lhe sai pelas costas num esguicho medonho de sangue contra a parede de um restaurante fechado, os olhos da minha vítima fixam-se em mim como lapas numa rocha e o silêncio que de repente interrompe a festa traz-me as suas perguntas pelo ar: porquê? Porquê? Duas perguntas que são a mesma.

Puxo a corda com a lança e na ponta vem o palhaço, arrastado pela rua, numa ribeira de vermelho em margens de alcatrão. Os outros palhaços, alguns zorros, homens-aranha, super-homens, vaqueiros, princesas, homens vestidos de mulheres, coisas, param e partilham o silêncio do espanto. O espanto é o máximo do silêncio.

Recolho a vítima, tiro a minha máscara de Scorpion e todos abrem ainda mais a boca ao ver a minha caveira em chamas antes de queimar até ao último osso o palhaço.

Em cada Carnaval julgam que sou apenas mais um mascarado.

Thursday, January 31, 2008

Cátia Rosa outra vez não

Reli num dia destes nova frase envolvendo a mesma pessoa: não é perseguição, é uma coisa que me surge no caminho do trabalho: Cátia Rosa faz um granda broche. Fiquei, confesso, feliz. Há muito que me perguntavam: E a Cátia Rosa?, tendo eu de responder sempre o mesmo aborrecido: não sei dela o que quer que seja.

Tudo mudou, portanto. Cátia Rosa está, pelo que se vê, em plena actividade e claramente a subir de nível. Atendendo à sua última aparição em mural, onde se lia A Cátia Rosa dá a cona e o cú a todos – frase por nós aqui oportunamente trabalhada em Agosto último – há evidentemente um certo enriquecimento no gesto. Antes, Cátia Rosa limitava-se a dar: e dar, meus caros, é um verbo em si mesmo oferecido, fácil. Agora, Cátia não dá apenas, Cátia faz. E fazer, meus amigos, é outra coisa. Não dêem peixes, ensinem a pescar. Por isso me congratulo.

Agora, outras questões se levantam com aquilo que Cátia Rosa faz. Analisando a frase na sua simplicidade aparente Cátia Rosa faz um granda broche é de um ponto de vista potencial, uma declaração corriqueira. Qualquer pessoa é capaz de tal coisa, assim como qualquer pessoa é capaz de cagar de pé, por exemplo. São apenas coisas que, caso alguém as queira fazer, fá-la-ás certamente. Quem tem boca vai a Roma, mas é claro que ninguém vai cagar de pé só para provar que de tal é capaz, preferindo-se por norma as posições sentado ou agachado. Quero eu portanto dizer que a frase em si, neste sentido, nada revela.

Porém, atente-se no termo granda. Poderíamos começar por dizer que granda não existe e ponto final. Mas, pronto, imaginemos que granda existe. Granda, a existir, poderá apenas remeter para o tempo ou para a qualidade da técnica. E é aqui que entra a questão que sempre nos surge no horizonte: quem terá escrito tal coisa naquele muro? Se o granda remete para a duração do acto só pode ter sido a própria Cátia Rosa, elogiando os seus méritos. Se remete para a qualidade da técnica, também.
E explico porquê: para o homem, se há gesto técnico cuja qualidade é sempre boa é esse, logo não terá sido um homem a destacar a frase. Além do mais, um homem, a querer ofender, iria certamente recorrer-se de uma frase com outro nível de generalização: A Cátia Rosa é uma brochista, por exemplo. Algo que realmente achincalhe.

Terá sido uma mulher? Enfim, não vamos por aí, vamos manter a este importante tema dentro dos domínios da sanidade mental, porque eu ainda sou de uma geração onde a sanidade mental é importante. Não sou preconceituoso, nada disso, apenas gosto de saber quem são os meninos e quem são as meninas. É algo que eu considero uma exigência mínima para o meu bom funcionamento social.
Se não foi um homem a destacar o feito, só pode ter sido Cátia Rosa, numa vergonhosa acção promocional. E comete sempre o mesmo erro de nunca se identificar devidamente, esta rapariga não tem emenda. Tão boa numas coisas e tão fraquinha noutras.

Friday, January 4, 2008

O meu papel

A internet acabou, finalmente. Resistimos aqui debaixo destas ruínas, tememos que aquela parede de carros que empilhámos para bloquear a entrada não os sustenha muito mais, eles gritam desesperadamente por nós, querem-nos derretidos em cabos de tensão da mesma maneira como estão todos os outros, a escorrer pelo metal até ao chão.

A internet acabou, foi a nossa primeira vitória, a mera visão do que nós temos deixou-os em guerra uns com os outros, uma guerra de destruição simultânea que desactivou todas as energias. Só resta a natureza ao que resta da humanidade.
Mas falta-nos uma segunda vitória agora: fugir deles, que ainda precisam disto, de tão precioso se tornou.

Quando há anos todas as árvores do planeta foram cortadas, o papel, já fora de uso, passou a ser impossível. A noção de registo, de presença, de físico, foi a primeira vitória deles. Falta-lhes a segunda: exterminar-nos.
A informação passou a circular de endereço para endereço, perdeu compromisso, começou a fugir das pessoas quando antes ficava quieta à espera que as pessoas fossem ter com ela, a lei deixou de ter rosto. Perdemos os espelhos da nossa cultura, somos os vampiros destes tempos, nada nos reflecte.

A culpa é deles. Lá fora, estão a começar a afastar os carros, sabem que estamos aqui. Não sei como eles são ao certo, só os ouço, só os imagino. Talvez nem existam realmente, talvez só nós existamos por fim e eu de tão só já deseje inimigos.
Eles querem acabar connosco: comigo e com este papel onde escrevo.
Sentes-te melhor de manhã ou à noite, miúda? Se queres escrever, esta é a coisa mais importante da tua vida, esta resposta.

Os da manhã confiam nas coisas, vivem, gostam do cheiro da rua dentro dos narizes, centrifugam tudo no cérebro. Os da manhã precisam de motivos para escrever. Os da noite se pudessem nem respiravam, detestam, sentem a alcatifa debaixo dos pés, encostam uma mão ao vidro, deixam que chova lá fora.

Há um certo consolo na tristeza ainda por explicar. Uma melancolia que faz cócegas no peito, um carinho maternal. Parece uma desnecessária atracção de azar, que não é, azar é apenas outro sinónimo de doença, não tem outro nome. Os da noite precisam apenas de si. Sentem uma vontade de inspiração mesmo que a não tenham, uma ânsia de se transformarem em líquido. Transforma-se numa coisa inata, é uma diáspora por dentro, uma tristeza doseada, meia tristeza, uma mágoa de trazer por casa, de nódoa na alcatifa, deixando lá fora, enquanto se deixa que chova, essa gente que, sabe-se lá porquê, encontra sorrisos nas manhãs e gosta de acordar dos sonhos.
Consegues, miúda, realmente escrever a sério sobre uma coisa que te faça rir?