Saturday, March 29, 2008

Thursday, March 27, 2008

12 palavras macacas

Lançaram-me e laçaram-me com um desafio do blog da Ensaimada que podem ver ali ao lado na minha lista de blogues nices. Querem que escolha doze palavras preferidas. Por mim tudo bem. Cá vão.

1- Renuído. Aquele gesto que se faz a abanar a cabeça para dizer que não.

2- Garrano. Que é um cavalito.

3- Amíude. Porque passei a vida toda a cantar «De Lisboa a Bragança são nove horas de distância, queria ter um avião para lá ir mais a miúda». Até que percebi que afinal era amiúde e não a miúda. Mas continuo a cantar mal.

4- Foda-se. Porque me serve, como para toda a gente, para uma coisa boa ou má. Posso marcar o terceiro golo ao rival num jogo decisivo ainda antes da meia-hora, levantar-me e gritar foda-se em vez de golo. Mas também posso dizer foda-se quando sofro golo. O futebol, no fundo, pode ser uma sucessão de foda-ses.

5- Ergasiotiquerologia. É o ramo da Medicina e do Direito que cuida dos acidentes do trabalho, das doenças profissionais e suas consequências.

6- Cona. Às vezes tenho mesmo de ser terra-a-terra, é a vida, desculpem lá. Porque cona é uma palavra que soa mal mas é de longe a mais utilizada para nos referirmos a ela e logo é um termo que merece ser homenageado. E, além do mais, qualquer outro termo é absolutamente inutilizável. Cona é um termo resistente num meio onde não há meios-termos. Qualquer outro, ou é ainda mais terra-a-terra, diria mesmo que subterrâneo, e logo indelicado, ou então é cientificamente absurdo: vagina, ou mesmo vulva, caso nos estejamos a referir a todo o, digamos, complexo. Sou um teórico.

7- Anticonstitucionalicimamente. Porque é a maior palavra em português e porque, se calha a ter a cabeça numa tigela cheia de ovos, com tanta volta que dei à língua até a conseguir dizer teria batido claras em castelo.

8- Carruajar. É andar de carruagem. Nunca carruajei, que me lembre.

9- Keewatiano. Divisão estratigráfica correspondente às formações mais antigas do Pré-Câmbrico canadiano. Mas é uma palavra que raramente uso. Se a uso, vá, uma vez por semana é muito.

10- Mainada. Que no fundo junta as palavras mais e nada numa só e uso quando apoio uma ideia, geralmente sócio-política. Exemplo: Alguém diz: «Acho que Weber postula a definição de estado que se tornou essencial no pensamento da sociedade ocidental. O estado como entidade que possui o monopólio do uso legítimo da acção coerciva. A política, se queres que te diga, deverá ser entendida como qualquer actividade em que o estado tome parte e de que resulte uma distribuição relativa da força.» E eu: «Mainada»

11- Fuínha. Gosto do efeito que tenho de dar para dizer o i. Fuííííínha.

12- Refego, que são aquelas dobras nos gordos e que são particularmente engraçadas nos bebés e no boneco da Michelin.

Tuesday, March 18, 2008

— Caro doutor Pinto da Costa, gosto tanto de si, acho-o um homem tão charmoso, uma espécie de figura paternal para uma menina frágil como eu .

— Quando morreres, minha querida, o teu cadáver será igual ao de todos os outros. Irás apodrecer e toda a beleza que hoje tens de nada te valerá. Os ritmos de putrefacção serão os mesmos para qualquer um de nós.

— A sua barba branca, tão natalícia, caro doutor, é para mim um refúgio, acho que é amor o que sinto por si.

— Só o dizes porque ficaste impressionada ao ver-me na televisão a protestar contra aquela autópsia a um extraterrestre, quando me rebelei contra a palhaçada e disse, afoito: toda a gente sabe que não é daquela maneira que se serra uma cabeça!

— Confesso, doutor. Deste então não consigo parar de pensar em si a meu lado. Venha, meu querido, acompanhe-me à esplanada para tomarmos um refresco. Que me diz a um sumo de laranja?

— Laranjas... já te disse, minha pequena, que faço autópsias como quem descasca laranjas?

— Ó doutor, você estraga-me de mimos.

Saturday, March 15, 2008

Cambada de selvagens

Uns ventiladores, um tubo de chaminé e umas latas vazias com restos de tinta amarela, pintada por dentro. O parapeito de cimento a toda a volta do telhado deste prédio de 25 andares. Lá em baixo ficou a cidade e ali na entrada de metal um guarda que me viu subir as escadas pela calada tenta abrir a porta que eu barriquei com um tanque de lavar roupa e uma chapa de zinco.
Disparo contra a porta para que ele se cale do outro lado e ouço-o descer a escada aos gritos.

- Um selvagem, você é um assassino e um selvagem, vou chamar a polícia já!

Sentado no parapeito tiro o cavaquinho da mochila. Tem um som arranhado, soa-me como quatro guitarras. O vento ajuda-me a dedilhar e assobia entre os meus acordes.
O Sol é uma lanterna apontada à minha cara, que me interroga. O céu não tem cor, o seu azul é uma mentira que reflecte o mar. Ouço agitação lá em baixo na estrada, mas não olho, ouço gritos e uma sirene. Pego na pistola outra vez e disparo. Ouço mais gritos e parece que o sol me aquece mais a cara, inspiro cheiros que chegam de longe, de um sítio qualquer depois do mar, onde ainda ninguém foi, nem pessoas nem caravelas, sem índios, sem costumes, só os cheiros selvagens de coisa nenhuma. Inspiro o mais que posso até que o ar me encha o suficiente para voar daqui.

E grito. Daqui de cima ninguém me ouve e o mais libertador dos gritos, acho, é precisamente este que mais ninguém ouve. Um grito só é verdadeiramente de alguém se mais ninguém o escutar.

Parece que vem ali um helicóptero, há um flap flap flap que corta o meu amigo vento às fatias. Disparo para o helicóptero mas não me parece que lhe tenha acertado.
Sou um selvagem, disseram-me, largo a pistola e o cavaquinho e cheio de ar corro e salto. Empurrado pelo vento, voo entre o espanto da multidão, inesperadamente presenteado pela natureza por este meu estado selvagem.

Tuesday, March 11, 2008

Escrever o nome

Escrevo o teu nome num papel, escrevo, escrevo, as letras são cicatrizes no corpo branco da página. O teu nome várias vezes, vezes seguidas, a mesma palavra para sempre forma novas palavras, novos sons que soam ao contrário, rapidamente no meu cérebro.

Escrevo, escrevo. A primeira coisa que aprendi a escrever foi o meu nome. A última coisa que escreverei será o teu. Agora que me vou embora, que me dizem que tenho de me ir embora, que me contam o tempo, que o meu tempo conta sinistramente até ao fim, não posso nem quero levar-te comigo. E por isso escrevo o teu nome num papel e gosto de o ler logo de seguida, vezes e vezes. Porque noutro dia, a ler este escritor – o escritor sou eu - aprendi que a única coisa que se leva verdadeiramente desta vida é aquilo que se lê; e que a única coisa que se deixa é o que se escreve. E por isso escrevo o teu nome, para que fiques cá para sempre enquanto eu tenho de me ir embora.

Escrever é o único pacto possível com o tempo.

Monday, March 10, 2008

Ontem nunca mais chega

Ontem o dia andou-lhe todo para trás. Começou exactamente quando ela se foi deitar, depois de se despir e vestir e o pijama, numa meia luz que escurece mais o quarto do que o ilumina. E uma meia música que chega do rádio, que adormece mais do que desperta. Na casa de banho penteou o cabelo, tirou a maquilhagem com umas almofadinhas redondas de algodão, ouviu-se correr a água pela louça.

À tarde falou-lhe ao telefone, disse-lhe que gostava muito dele e ele pigarreou, respondeu que não a podia ver mais tarde, que tinha outra vez trabalho, que tinha coisas.

De manhã ela jurou que jamais lhe voltaria a ligar desde que os dias fossem sempre assim, perfeitos quando andam para trás, dias que nunca desiludem. O tempo para a frente é um castigo, às vezes nunca mais chega o dia de ontem.