Wednesday, April 25, 2007

Favita, o pombo de corrida alentejano


O meu dono convida as visitas a entrar-lhe na casa, atravessar a luta dos alguidares, as prateleiras dos móveis velhos, indecisas entre ceder ou suportar mais um ano de objectos acotovelados, fotografias paradas no tempo, círculos de pó das coisas que se foram embora, chateadas com aquilo.

«Venham por aqui que é melhor», sugere o meu dono, penteado pelo capacete da mota, enquanto empurra para a varanda. Eu na gaiola, arrulho, observado pela desconfiança desta gente nova que me desconhece conquistas, sou um campeão.
«Olhem-me esta vista, ninguém ma tira. O resto está velho, desarrumado, eu sei, desculpem-me lá», pede ele, coçando a cabeça. O capacete faz-lhe cócegas, viver sozinho resulta nisto: tudo se desarruma, coisas, cabelos, pensamentos. Os dias ficam, eles mesmos, desarrumados: às vezes começam de noite e acabam pela manhã. As tardes, aqui, no calor, estão sempre no mesmo sítio.

Lá fora, o Alentejo, desviando a roupa molhada no estendal e as meias rotas que talvez ninguém note, estão árvores bronzeadas, um azul da barragem do Maranhão muito ao longe, continuação do céu, para o outro lado: as casinhas baixas de Avis.

O meu dono acredita que o melhor que tem para oferecer às visitas, o melhor da sua casa, é o que está fora dela, mas engana-se: o melhor é quem está lá dentro.

E eu, Favita, parece que é isso que me chama quando sobrevoo a casa no final da prova, assobiando, rolando milho num púcaro. «Anda, Favita, anda para casa, acho que hoje ficamos em primeiro, anda campeão, 650 quilómetros em sete horas é o melhor tempo de sempre, anda Favita», ouço-o. E desço, saca-me a anilha rosa da pata, tenho quatro números desta vez, sou o 1756, cola a anilha num relógio grande com tanto pó que as horas e os tempos têm de ser adivinhados. Terminei em segundo, afinal.

Sei de pássaros que fogem das gaiolas. Se calhar migram para as grandes cidades, onde as aves, contou-me um pardalito, descansam em monumentos e há comida pelo chão. E eu, aqui no Alentejo, que me soltam tão longe e volto sempre.

Tuesday, April 24, 2007

Eusébio regressa


Confesso que durante o internamento de Eusébio, com as conferências diárias para a imprensa, vivi na esperança de ouvir um dos médicos dizer:

- Sim, Eusébio está a recuperar bem e pensamos até que pode jogar domingo.

Mas não, parece que está bem.

Thursday, April 19, 2007

O Colosso de Cacilhas

Rosnam hordas de antanho a abrandarem navegações no Tagus. O rio, hostil, quase descansa as suas correntes e ordena aos ventos que não soprem favoravelmente os estranhos. Remem, porcos. A neblina cobre as margens e os sons vêem-se melhor do que as visões, pois estas não se esticam além de três palmos. Acima, tão longe, para lá da curva das brisas, as feições disformes do Colosso de Cacilhas, tão disformes que quase não são feições, oitenta metros acima das vagas da barra e sobranceiras sobre as próprias nuvens. Os homens rendem as armas carcomidas pela ferrugem, entopem-se de medo, olham-se, bêbados com a realidade. É a primeira vez nas paragens e há gente à espreita sem que se saiba de onde.

Assombrosa a visão do Colosso, construído entre 340 e 320 a. C, magnificente alucinação de bronze, com um descomunal pé no Ginjalium e outro em Alcantarium, cidades penhoradas no esplendor comercial da magnânime Cacilheirumaran, de onde todas as estradas de mar e terra partem. Na urbe dos príncipes-poetas, as mulheres desmaiam aos pés dos fidalgos das palavras mágicas, embevecidas pelas rimas e pela profundidades das coisas, mais fundas do que os abismos desconhecidos do mar, que, dizem os sábios, permitem aos ousados que neles mergulhem passar de um oceano para outro oceano do Mundo Achado.

Acostam lentamente os plebeus vindos de lugares sem nome. Apresentam trapos e medo, corteses à medida que passam entre as pernas do Colosso. À sua espera ninguém, de tão inofensiva parecença. As esposas riem-se das tristes figuras dos visitantes, abraçadas aos braços e pernas fortes dos príncipes-poetas. Tratam as visitas como homens menores, cães, doentes.

Conta-se que um cataclismo dizimou Cacilheirumaran, Ginjalium e Alcantarium e que as ondas encharcaram a afortunada terra dos príncipes-poetas. Hoje, 2007, ouvem-se tantas vezes sons que borbulham debaixo do rio, entre lodos e lamas, nem os mais corajosos peixes se avizinham dos pedaços de bronze, morrem longe.

Avisa o Oráculo que o Colosso ressurgirá da água para voltar a erguer-se entre as margens do Tagus, arruinará a ponte que hoje o substitui, fundará as cidades das lendas, Almadacrulium, Margemsuliacrum e Daweaselaquis. Voltará a assumir-se como prodígio dos mundos, no dia sete do sete de dois mil e sete. Tremei, mal-cheirosas hordas de antanho.

Tuesday, April 17, 2007

Caro Pedro Abrunhosa


Alguém, por favor, lhe dê a conhecer estes endereços, para que, de vez, lhe levem os fantasmas e lhe digam onde é a estrada.
Do mais agradecido que pode haver,
Lunatic on the grass.

Saturday, April 14, 2007

Sou imortal, evidentemente

Sou imortal até que me provem o contrário. Falta-me a noção de que vou morrer, julgo que o tempo é uma coisa que só vai começar a contar a partir do momento em que estiver realmente velho, em que me doam coisas, em que me falte força e memória. Só sinto que falta pouco para que o tempo comece a ser, enfim, o tal tempo de que me falam.

Acho mesmo que um dia destes alguém com dois metros e um rasgão cosido na garganta me vai dizer, do alto da sua espada ainda maior: «Immortal, I am here for the Gathering, there can be only one.» Nessa altura terei mesmo a certeza de que sou imortal, mesmo que, impreparado para luta de tamanha envergadura, morra no instante seguinte com a cabeça a rebolar no chão.

De momento, a única prova que tenho é o facto de não ter morrido. Prefiro ser assim: ter a ilusão de ser imortal a ter a certeza de que o sou realmente e deixo de ser logo a seguir, com a ignorância, vermelha e a gotejar da espada do outro imortal, confirmada.

Insinuar um galão

Miúdo, pedir namoro era complicado. Exercitava frases, arqueamento de mãos, direcção dos olhos, proximidades, cheiros, se antes ou depois das aulas. Crescido, não há amor que se peça, o namoro insinua-se.

O galão, nas pastelarias, jamais se pode insinuar, tem mesmo de ser solicitado. Talvez me engane: é servido num copo de vidro grosso; se o despejarem numa chávena grande passa a meia-de-leite, mantendo-se o conteúdo, contudo alterando-se a forma; pode, ainda, ser um garoto, se em chávena de café.

Até aqui ainda me situo. No fundo, transpondo o momento, esta é apenas a fase em que se decide a que rapariga pedir namoro. Queria aquela, assim como geralmente quero um galão e quero lá saber da meia-de-leite ou do garoto e do poder de sedução das suas chávenas grandes ou pequenas.

As dificuldades adensam-se: de máquina ou do outro, perguntam-me. Nem sei que responder. Só me lembro de ter ficado assim quando ela, tão novinha, me disse que gostava de mim, mas que não dava. «Até gosto de ti, mas agora não dá», memorizei dramaticamente.
Há pior: geralmente queria galão morno mas, por vir sistematicamente a escaldar, achei que não valia a pena especificá-lo.

De modo que a saborosa mistura de café e leite me chega num copo de vidro, sem que eu saiba se de máquina ou do outro e eternamente a ferver como o inferno. Vai ser sempre assim até que eu saiba insinuar um galão. Até lá, gosto mas acho que não vai dar.

Sunday, April 8, 2007

Batman contra Cotton-Man

Um amigo, na faculdade, onde a criatividade está, como se quer, virada do avesso, criou o Cotton-Man, super-herói que disparava mortíferas bolas de cotão recarregadas nos bolsos dos casacos.
Outro amigo, de menos tempo, gasta muito em livros de banda desenhada, descobre-os perdidos nas feiras, limpa-lhes pó, protege-os das nódoas de gordura e das migalhas como do diabo, sabe o que é um número raro, entende serem forma de arte maior. Emprestou-me, num dia destes, um do Batman, de argumento e traço de Frank Miller, chamado The Dark Knight returns, um clássico, garantiu-me. Implorou-me que não lhe dobrasse a lombada e que não me atravesse a lê-lo enquanto comia.
Pessoalmente, li muita BD quando miúdo, parei de o fazer ao ritmo do crescimento e aceitei essa tendência da coisa: os adultos deixam de ler banda desenhada, desiludem-se com as possibilidades que ela abria. O que antes parecia existir num outro espaço e tempo, deixa, simplesmente, de ser possível.
Ainda assim, esforço-me por preservar o fascínio pelos senhores das capas e uniformes, pelos traumas e pela solidão causada pelas vidas duplas. Curiosa dicotomia: ser duas pessoas e ao mesmo tempo só.
Vejo os filmes. Gosto do Batman — lembrei-me da preferência agora que tenho o livro marcante para ler —, porque não tem poderes especiais, é humano, engenhoso. E tem, inegavelmente, o fato com mais pinta, o carro mais impressionante e uma ligação com uma miúda que se veste de gata.
Acho que também isso mudou em mim: quando era miúdo ambicionava super-poderes; hoje, adulto, quero ser humano e engenhoso, ter um fato com pinta e acharia muito bem se as miúdas andassem vestidas de gata. Por mais Andrew-Lloyd-Webberiano que isso me torne. O que em miúdo era carnavalesco, ganha, estranhamente, carga erótica a caminho dos trinta anos.
Mas ser o Cotton-Man, caraças, atirar bolas de cotão aos gajos, aos maus, pum pum pum pum, fogo, isso é que era.

Tuesday, April 3, 2007



I want to believe, diz o outro que passa a vida atrás de étês e depois rouba esta Tea Leoni de outro mundo.