Friday, February 22, 2008

Um mês tem 30 noites

Tenho um problema com os dias. Acho que são favorecidos em relação às noites, que são mais importantes na contagem do tempo. Um mês tanto tem trinta dias como trinta noites e nós

- Então combinamos para dia 21, pode ser?

Nem respondo. Prefiro a noite 21. Prefiro fazer anos na noite 9 de Maio. Sou mais eu de noite. Quando tudo à volta escurece vejo-me melhor a mim, pareço aceso por dentro, desperto, tenho olhos amarelos que brilham ao longe, muito ao longe, para quem me vê dos sítios onde é de dia.

Wednesday, February 20, 2008

Cheira a tabaco na rua

Às vezes entro e saio dos prédios, dos restaurantes, das lojas, sinto agora fora dos sítios o cheiro a tabaco que antes sentia dentro deles. Cheira-me a fumo na rua.

Pergunto-me que cheiros tem a minha cidade e se não são os cheiros, mesmo os maus como o fumo, que a tornam diferente a partir do momento em que as suas esquinas me são tão conhecidas. E as suas pessoas.

Passa sempre um vento novo com aromas do Tejo, aqui, e do mar, ali, e um cheiro lento que saiu ontem de Sintra e só agora está a chegar para me deixar também verde por dentro.

É como o amor, é descobrir sempre um vento novo que passa no ombro de uma amante de sempre.

As vidas e as mortes dos cães e dos gatos

Jamais se enganava no lado para onde abria a porta do elevador. Havia duas no prédio, cada qual abria para seu lado, mas ele sabia sempre em qual estava, castanho claro, a pingar baba da língua depois do passeio a correr pela rua.

Ao dono diziam-lhe que o cão estava gasto, que os catorze anos que tinha eram na verdade multiplicados por sete, que o seu cão tinha 98 anos, era muito velho. Era uma espécie de tempo que passou mais depressa.

O dono respondia que dos gatos também contam que têm sete vidas e que se ele na verdade matasse um gato este morreria mesmo e não ficaria à espera de viver mais seis. Isso dos cães só podia ser mentira.

Até que um dia ao subir da rua, depois de a muito custo ter subido dois degraus da escada, passando lentamente umas patas e só depois as outras quando antes subia os degraus num salto, o cão enganou-se na porta do elevador. Era a que abria para a esquerda e ele ficou a olhar para o lado direito, com o focinho quase enfiado nas dobradiças.

Foi então que o dono percebeu enfim o tempo que o animal trazia consigo. Uma dor foram sete dores, o estômago torcido como se fosse um trapo que está molhado e se quer apenas húmido.

Começou nesse dia a dizer-lhe adeus, aos bocadinhos, a dizer-lhe adeus muito baixinho para as suas orelhas grandes, para ninguém ouvir, entre puxares de bigodes no focinho e olhares que os gatos não sabem olhar. Um adeus em que nenhum se vai realmente embora, em que ficam ali, com uma idade qualquer que não morre. Assim, quando o adeus vier mesmo, acreditarão que permanecem, num adeus a fingir, multiplicando a vida como gatos. Uma morte será apenas uma morte, nenhuma morte serão sete mortes.

Tuesday, February 5, 2008

Scorpion, depois do Mortal Kombat


Eles são palhaços mas não sabem do que riem. O ar são pintinhas às cores que me turvam a vista, mas não o pensamento. Do meu pulso sai uma lança amarrada a uma corda e trespassa o peito do palhaço do outro lado da rua. Assim que a minha lança lhe sai pelas costas num esguicho medonho de sangue contra a parede de um restaurante fechado, os olhos da minha vítima fixam-se em mim como lapas numa rocha e o silêncio que de repente interrompe a festa traz-me as suas perguntas pelo ar: porquê? Porquê? Duas perguntas que são a mesma.

Puxo a corda com a lança e na ponta vem o palhaço, arrastado pela rua, numa ribeira de vermelho em margens de alcatrão. Os outros palhaços, alguns zorros, homens-aranha, super-homens, vaqueiros, princesas, homens vestidos de mulheres, coisas, param e partilham o silêncio do espanto. O espanto é o máximo do silêncio.

Recolho a vítima, tiro a minha máscara de Scorpion e todos abrem ainda mais a boca ao ver a minha caveira em chamas antes de queimar até ao último osso o palhaço.

Em cada Carnaval julgam que sou apenas mais um mascarado.