Saturday, September 29, 2007

«Achas que leve um menir, Astérix? Nunca se sabe quando será preciso um menir», Obélix, em A Volta à Gália


Acho mesmo, do fundo do meu coração, que sou a única pessoa no mundo que visitou três vezes o cromeleque dos Almendres.

Fica à saída de Évora. Da primeira vez guinei o volante e conduzi quatro quilómetros por uma estrada de terra até um menir no meio de uma propriedade privada e, um quilómetro depois, até uma plantação de pedras com oito mil anos, alinhadas numa colina. É isso, o cromeleque.

Enfim, isto, como me parece evidente, serve para falar de Andorra. Estive de férias no sul de França e na descida passei por lá porque me apetecia subir e descer os Pirenéus num Ford Fiesta. Mas também por curiosidade relativamente às pechinchas do principado, para perceber até que ponto é possível combinar estas duas palavras: uma rasteira, pechincha, outra emproada, principado. Soam-me como rei das farturas.

Andorra é, sem preâmbulos, um esterco. Passei por lá uma manhã e gastei 90 cêntimos, correspondentes ao estacionamento no parque de automóveis. Nada mais.

Por mim, levava um menir para Andorra, nunca se sabe quando será preciso um menir.

Tuesday, September 11, 2007

Feira medieval da peste negra

Ao contrário do Carnaval, que para os portugueses é um hábito emprestado, compreendo as feiras medievais. Essas sim têm costumes nacionais. Perturba-me, porém, que nas feiras medievais haja poucas alusões à peste negra, incontornável cunho da era.

Eu sei, claro que sei, que tantas vezes o espaço não dá para tudo e aqui me concedo o direito de repreender as autarquias que, nos seus largos e praças, ao lado das barraquinhas de ginjas, de cervejas, das espadas e das vestes, da Ordem dos Cavaleiros da Palermice e dos bordéis de odaliscas, não reservem cinco metros quadrados que sejam para uma tenda da peste negra.

- Entrai, entrai, nada temeis, afagai estes ratos doentes, infectai-vos e morrei em poucos dias com borbulhas de pus e sangue no corpo com especial incidências nas virilhas e nas axilas. Entrai, entrai.

Alguém entraria, de certo, recolhendo folhetos, lendo sobre as injustiças que ao longo dos tempos foram ditas e escritas sobre esse advento da Idade Média.

- Meus amigo, soubésseis vós o tamanho da injúria. Dizer-se que a peste matou metade da população da Europa, como se a guerra e a fome que se passava na Idade Média nada tivessem a ver com o assunto. São esquecimentos que me entristecem. Agrada-me que se celebre tal época, tão destrutiva para a ordem e para o conhecimento dos povos, empestada de doenças e mortes, mas sempre propus que o façamos de modos mais condizentes. E do vinagre? Ninguém fala desses tempos tão aprazíveis em que as pessoas e as casas empestadas eram lavadas com vinagre? Entrai, entrai, conhecei mais sobre a peste. Infectai-vos à vontade, afagai o roedor, mas depois não saieis daqui a correr para um hospital, seria tal atitude muito pouco medieval.

Sunday, September 9, 2007

Esta malta do rugby

Culloden fica no Norte da Escócia, perto da cidade de Inverness. É um campo ermo, trilhado, de vegetação rasteira, com duas bandeiras, uma amarela e outra vermelha, último local onde se travou uma batalha terrestre na Grã-Bretanha. Nada mais lá está, além de um pequeno monumento aos jocobitas, gentes das Highlands que não eram imortais mas ajudaram um governante escocês aspirante ao trono de Inglaterra na batalha contra, claro, o exército inglês.

Ganharam os ingleses, mas o monumento de Culloden é, repito, uma homenagem aos jacobitas, que perderam. Disse-me o guarda, quando lá estive há uns anos, numa manhã de dia de semana, nevava que Deus a dava; era, pois, eu o único turista e, na dúvida histórica, quis confirmar com ele se aquelas pedras tinham mesmo sido erguidas para os derrotados; ele explicou-me, limpando o gelo dos óculos:

- Perdem-se umas coisas, ganham-se outras.

Sabem, portanto, os escoceses, como poucos povos saberão, que nem sempre a vitória é de quem ganha.

Hoje, ao ver Portugal jogar com a Escócia no Mundial de rugby, os jogadores a cantarem o hino de uma maneira que nunca tinha visto, como se quisessem que o ouvíssemos em Lisboa, e a lutarem como se a diferença entre o amadorismo e o profissionalismo fossem apenas os ordenados, o único final possível era ver Portugal ganhar, mesmo com a vitória dos outros.

Um orgulho e uma inspiração, esta malta, uma exemplar manifestação desportiva.

Sunday, September 2, 2007

Uma menina triste

A tristeza deste quarto de adolescente cai dos olhos das bonecas na cama. Aqui me deito depois do jantar, nestas dores de peito de menina, maltratada pelo mundo que me fez crescer outra borbulha na face. Logo hoje. Logo amanhã que ele faz anos e eu terei de lhe dar parabéns e uma prenda e isso vai obrigá-lo a olhar para mim e a agradecer-me. Agradecer-me, logo a mim que tenho uma borbulha na cara, só pode ser um agradecimento por ter pena de mim. A borbulha é tão pequena e quando aparece é tão mais que eu, tapa-me tudo o resto, esconde-me atrás.

Nenhuma música faz tanta companhia como uma música triste. Por isso gravei da rádio as músicas tristes de que gosto e fiz uma festa sozinha onde a realidade não entra. Escrevo no diário isto, a capa tem flores e ursos que as cheiram, as páginas são alternadamente laranjas e amarelas, com ramos nos cantos e a minha caligrafia em mutação - faço os cês de maneira muito diferente do que fazia antes – escrevendo o tanto que gostaria de lhe dizer amanhã, com a prenda que lhe vou dar, no intervalo entre uma aula e sabe-se lá o quê depois, como as músicas tristes que me acompanham em danças que imagino, em refrões cantados como se escritos por mim e para mim.

A prenda que lhe dou, ele que faz 15 anos também, uma prenda que era suposto ser eu, uma prenda que lhe dou no meu lugar e ainda nem sei o que será. Não é fácil encontrar uma prenda que me substitua, uma coisa que eu queira tanto dar-lhe como eu me queria dar a ele.
Podia ofertar-lhe a minha cassete de músicas tristes e convidá-lo para a festa onde estou só eu, todas as noites, aqui, iluminada pelo brilho das lágrimas das bonecas, aias do meu sofrimento, aias dos meus ais. Desconfio que músicas tristes não são compostas para ouvir sozinha, que quando nos queremos dar a nós jamais deveremos dar outra coisa.

Conduzir é isto

Conduzir bem é chegar primeiro. Há muito interiorizei a ideia de que todos os outros condutores querem chegar a minha casa antes de mim.
Nos semáforos olham-me de lado: certamente querem abrir-me o frigorífico e beber-me o último iogurte líquido da Adagio, desprezando de forma provocadora os mais baratos da Yoplait, para comer à colherada, ainda por cima sem pedaços. Pressinto até que mesmo aqueles que vão para o lado contrário vão para o mesmo sítio que eu, apenas por caminho diferente.

Por isso me tornei num piloto citadino, que vê classificativas onde os outros ruas; que vê boxes de reabastecimento onde os outros estações de serviço; público onde os incautos senhoras que estendem meias e toalhas de banho no primeiro andar.
Agradeço a meu pai ter herdado tão privilegiado entendimento. Permite-me, diariamente, chegar primeiro à minha casa. Jamais se verificou chegar à sala e outro repousar no meu lugar do sofá com cara de cheguei primeiro.

Dizia eu: o meu pai não conduz, foge à polícia. Para ele, qualquer operação stop é um embuste para o apanhar especificamente a ele, qualquer agente numa esquina é um enviado de uma milenar Irmandade que elege a cada década um condutor desprevenido para perseguir até ao derradeiro dia.

Bem, tenho de ir andando, vocês imaginam porquê.