Saturday, December 15, 2007

Primeira carta:

Quisesse eu apagar-te. Que não me aparecesses, só. Escrevo-te para to perguntar: que posso fazer para que me desocupes?

Segunda:

Não respondes. Fico sem razão para te apagar. No fundo, aquilo que procuro não é esconder-me de um diálogo contigo, antes a satisfação decorrente de impedir que me fales. Se não me respondes estragas tudo.
Terceira:

Bom era que pudesse falar-te sempre, como agora, mas que jamais pudesses responder, como fazes; que sofresses com essa limitação, que a tua língua nada mais articulasse que sons para mim inaudíveis, que fosses um apito de cão. Que a vida fosse um jogo de squash, que eu jogasse e tu fosses parede.

Quarta:

E ganho a quem?

Resposta:
Sou a parede de onde não passas.

Proposta para Lynch

Ela fumou um sapo cor de ananás e começou a cheiras coisas com os olhos. Depois veio um boneco de chocolate de avelãs cantar melodias da Tasmânia e tocar reco-reco com uma unha encravada. Ele ia ao circo, no entanto um post-it cheio de anotações pregou-lhe uma rasteira com as orelhas e gritou para o céu que os elefantes tinham muito mais piada se voassem como voam papéis ao vento.
Até que, quando ninguém esperava, aparece uma senhora de uma cor qualquer disposta a fazer coisas que a ninguém lembram, e promete mundos e fundos para que uma carteira portuguesa onde até cabia um bilhete de identidade inteiro lhe dissesse para que lado é que ficavam as finanças de Álcacer do Sal.
Em chegando lá, havia uma fila interminável de tartarugas cor de burro quando foge que se queixavam do tempo que demorava uma ave rara a cair do céu, como se o próprio dEUS tocasse naquela banda belga que coiso e tal.
Até que veio um artista de circo chamado Artur, cuja grande habilidade era cuspir para o ar e apanhar o cuspo ainda quando estava a subir, e perguntou à senhora de uma cor qualquer: «Tu no Inverno vais à piscina?» Ao que ele respondeu: «Pá, deixa-me, mas é.»
Nisto, o sapo cor de ananás que tinha sido fumado apareceu numa nuvem de aguarelas em contraluz e começou a declamar os Lusíadas em italiano enquanto pedia uma piza de amoras que tinham entrado ilegais no país por terem subordinado uma andorinha dos andes que por acaso ia a passar.
Agora, David Lynch, faça lá um filme disto que eu vou ver de certeza.

Tuesday, December 11, 2007

Rivalidades da Trafaria

Quem jogasse no Trafaria não podia namorar com miúdas da Costa da Caparica e vice-versa, sob pena de aparecer a boiar na Cova do Vapor. A vida era assim.

Hoje, aquilo que está a minar o futebol português não é a economia ou o descrédito, antes a languidez de rivalidades.

Num dia destes, estava numa discoteca, nos finalmentes do aniversário de um amigo. Às quatro horas, quando a música acabou, cantou-se a do Benfica do Piçarra, aquela do Sporting da Maria José Valério, o hino do Marítimo, tentou-se até o brilhante tema do Moreirense mas ninguém se lembrava da melodia e acabou-se com o do Belenenses: hoje como antigamente, nada temos que temer, Belenenses para a frente e tal.

Havia ali uma saúde de espírito, de gente de clubes diferentes que cantava coisas dos outros. As músicas, afinal, são de ninguém.

Até que quatro homens azuis, de cartões do Belenenses, espantados com a manifestação, partiram do princípio que todos os que estavam no grupo eram azuis como eles. Não eram. Um deles era, vá.

Quem não era, de tanto brilho nos olhos dos homens azuis, foi incapaz de se desmanchar em sinceridades e fingiu-se tão azul quanto o próprio céu. Mal não faria.

As rivalidades, onde estão?

Mesmo no campo: o Porto está tão bem que não as permite. O Sporting tão mal que também não. O Benfica está no meio, sem saber com quem deveria rivalizar e nisso rivaliza consigo. O Belenenses, como tantos outros, pelo que se viu, anda à procura de gente para poder rivalizar com alguém. Ao menos isso.

A minha mulher é do mesmo clube que eu, claro.
Era o que faltava, ainda aparecia a boiar na Cova do Vapor.

Friday, December 7, 2007

A cidade dos templos



A sala no Metropolitan Museum of New York chama-se Sala do Templo de Dendur por uma razão: porque nada mais tem. São oitocentos metros quadrados com uma entrada, uma lateral de vidro para o Central Park e, ao meio, o templo, oferta do Egipto.

Passa uma senhora americana, com duas amigas, que tem dúvidas.

- Desculpe, pode-me dizer onde é o templo?

O vigilante, coitado, abre a mão quase sem a tirar do bolso e nada diz: é aqui, o templo é isto, como é possível que você não perceba que o templo é esta construção de pedra à sua frente, numa sala onde nada há além disto!

À frente dos olhos, claro, o museu erguia-se inevitável, a colocar ainda mais sombra sobre tão escusada pergunta.

E ela: ah, pois é.

Mas Nova Iorque tem a faculdade fantástica de nada ter a ver com as pessoas. A ideia de que se entra num novo país sempre que se muda de loja, restaurante ou mercearia Coreia, China, Japão, México, Portugal, Irlanda, Espanha, impede que a cidade tenha alguma coisa a ver com pessoas ainda que lá estejam oito milhões.
A mistura é tanta que não há identidade possível.
São as ruas sujas e as torres de Babel que tocam no céu, as luzes na cara, é uma cidade de brincar para gente grande. São trinta quarteirões de contos de fadas e 30 mil de histórias reais. Mas não são as pessoas.

São os edifícios que são gente. O Chrysler Building por exemplo: não se pode visitar além do átrio, muito menos subir ao topo; não tem exposições, não é o mais alto, não é o mais bonito. Não é nada além daquilo que é: o Chrysler Building. Haverá melhor definição de personalidade?

A gente, ali, conta realmente pouco, vive na confusão de templos.
Por isso pergunta a senhora, à frente de um deles, onde é que um deles fica. E o que parecia estúpido é apenas humano.