Caríssimo,
a frio lhe escrevo pois semanas se foram desde que me estilhaçou o vidro do Ford Fiesta na Rua das Taipas, ao Bairro Alto, para me desocupar o porta-luvas. Se porventura tivesse, então, beneficiado de qualquer ocasião para lhe escrever a quente certamente teria sido com um ferro em brasa para marcar varas e manadas.
Consigo, hoje, porém, percebê-lo. Partiu-me a janela do pendura e surripiou-me – porque ladrão que actua pelas calejas indistintas do Bairro não rouba, nem tampouco rapina, antes surripia - os cedês de bandas sonoras de filmes de Woody Allen. O que foi bem seleccionado, convenho. Aliás, jamais conheci ladrão que não se inspirasse com Take the A Train de Duke Ellington, faixa 18 do primeiro disco. Deixou-me – muito obrigado - um cedê de Rufus Wainright e isso eu também percebo, porque ainda que lhe reconheça talento não sei se é coisa que se queira ao ponto de pedir emprestado sem autorização e para sempre. E digo-o assim, com esta expressão, porque você, como usurpador, só merece eufemismos que lhe atenuem a camelice. O que me constrange acima das outras coisas é que não tenha levado o livro daquela gavetinha ao lado do banco, o Almas Mortas de Nicolau Gogol. Não é tão divertido como O Nariz, eu sei, mas se há livro para si é aquele que, justamente, não levou.
Também aqui há semanas – aproveito para lhe dizer, afinal se me rouba é porque temos gostos comuns e nada impede que possamos um dia ser amigos - fui a Berlim e ao ver um grupo de executivos à saída do Deutsche Bank senti que me roubaram no spread sem sequer me olharem; e esse roubo, atente bem, não é mero roubo, nada disso, é filhadaputice, coisa a sério, são ladrões de classe, que roubam mesmo quando os outros estão a ver e sabem o que eles fazem. Mas é quando me entram no Fiesta, a diesel – que é, já agora, quase tudo o que eu sei efectivamente dizer sobre as características do meu carro: que é a diesel; além de que para entrar uso uma chave e não parto o vidro – que me esfarelam a intimidade. Julguei que mais depressa me levaria o Almas Mortas do que o livro técnico onde costumo ver a pressão dos pneus e descubro, como num mapa, o tesouro que é o maldito canto escondido da caixa de fusíveis. Pior: junto às mudanças havia um relógio, um swatch de 80 euros. Você não o levou e desde já lhe digo que se esperava um rolex num Ford Fiesta, meu caro, você, evidentemente, limita-se mesmo a surripiar. Mais: é tão básico no que faz que o melhor da sua profissão é que, porque trabalha nas ruelas e não num banco berlinense, ninguém o pode ver a trabalhar e pode assim continuar a fazê-lo na sua invisível estupidez.
Espero que esta carta não vá já demasiado longa, detestaria roubar-lhe tempo.
Saturday, November 8, 2008
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6 comments:
tá um amor! e o swatch até é bem bonito...
Pá, ladrão de Bairro Alto não quer saber as horas. Para ele é sempre cedo... Não precisa de um swatch para lho dizer!
Se ele tivesse relógio teria pensado: tenho de correr antes que o dono do carro venha. Assim descontraiu. Levou o que lhe interessava e deixou o que não fazia falta! Ora, assim vale a pena ser roubado!!! (e ler blogues)
"O Surripiador das Taipas" Esse livro ele não gamou de certeza, o sacana...
Se bem que pela boa escolha de items, o rapazola bem merece a elevação das suas palavras my friend
eheheh :-)
MUITO BOM!
Escuta: achas que o surripias sabe oque é o Deutsche Bank?
Claro que não, este senhor não deve saber a diferença entre um spread e uma carcaça com manteiga. E deve até julgar, como um colega que tive na escola, que arroz é um tipo de massa.
Aconteceu-me a mesma coisa!!
Mas eu, por sorte, (e isto já deve ter sido um feeling que eu tive, atenção)deixei o carro destrancado, portanto a parte do vidro não foi necessária! Mas a verdade é que já tinha tido esse feeling muitas vezes (é uma tendência que eu tenho) mas é um facto que foi só ali no Chiado, mais propriamente no Largo do Picadeiro, que me gamaram os meus CDs!! A maioria ficaram lá porque eram cópias e isso o ladrão não quis. E dos CDs levaram as caixas, pq eu devido à minha desarrumação dentro do automóvel (e é já a contar com estas coisas, atenção tb!)tinha os Cds noutro sítio qualquer. pá, mas o que conta é a intenção, tá mal, não se faz e agora fiquei sem as caixas dos originais.
Estou solidária
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