Monday, June 18, 2007

Ficou-se no túnel a cinquenta

Ele ia desvairado, às turras com a vida, perdido nas suas ruas, com a Feira Popular à direita, ao comando do automóvel, de cotovelo esquerdo na porta e a palma direita nas mudanças. Acima do pavimento, a contraluz das estrelas, o painel avisava 50, piscava ameaçadoramente. Estranho haver ali cinquenta radares, pensou. Imaginou-os furtivos nos telhados, de miras escarlates nas suas testa e barriga, pontinhos de luz que rapidamente eram balas.
Tinha opções: descer o túnel do Campo Pequeno, à velocidade máxima de 50 – percebera então a que dizia respeito a certeza do número – ou continuar por cima, arriscando três semáforos. Optou pelo túnel, no entanto, a meio da encaracolada corrida, arriscou 55 e logo 60. Há noites em que só apetece acelerar, deixar o próprio vento para trás, transformar as curvas em rectas, esticar o pavimento, queimar a borracha, dominar a máquina.
Já do outro lado, na luz salpicada da noite da capital, cinquenta agentes da autoridade lhe bloqueavam a passagem, cinquenta velhas armas puxadas dos coldres poeirentos, cinquenta caras de mau e cinquenta ordens para sair do carro com as cinquenta mãos nas cinquenta cabeças, se as tivesse. Seria um duelo do Oeste, se eles não fossem cinquenta; era um cinquentelo.
- Deita-te já imediatamente no chão, já no chão, já, já, ou ainda te rebentamos os miolos, já no chão, já! Que merda é essa de vir a sessenta no túnel? Julgas que esta merda é a Bósnia?
Inconsciente da ameaça, arrecadou uma saraivada de cinco dezenas de balas na tromba, nos costados e no cachaço, abatido ali como um touro de morte à sombra da praça.
Para a próxima, reflectiu enquanto mordia os próprios dentes e o sangue lhe escorria pelos orifícios como um bife grosso na brasa: «Vou por cima, para a próxima vou por cima do túnel; mesmo arriscando três semáforos vermelhos ainda chego ao outro lado mais depressa do que se for por baixo a cinquenta.» Tinha 27 anos, essa idade para morrer, coitadinho, o que lhe faltava para os cinquenta.

2 comments:

Maria João said...

Mais dois belos textos. Assim dá gosto.

Continua, que já ganhaste (mais?) uma fã.

Maria João

Lunatic on the grass said...

Muito obrigado, volta sempre. É um prazer.