Como todos os traumas, o dele tinha uma génese qualquer. Dizia-se que em miúdo sofrera um acidente de viação, que seguia no banco de trás e a mãe conduzia, guinando o volante ao ritmo do ressonar do pai, dos barulhos monstruosos que lhe escalavam a garganta. Ele colava o nariz à janela, embaciava o vidro, desenhava mundos novos com os dedos, simultaneamente lápis e borrachas.
Mas numa curva o carro não curvou. Ninguém morreu, excepto o carro, que ali ficou para sempre abraçado ao muro de um quintal.
Hoje, ele fala de tudo, um super-herói da discussão: filosofia pré-socrática, as valências do éter, futebol e cantos de mangas arregaçadas, a importância epistemológica do bacalhau com todos, a profundidade do petróleo, o valor do dólar face ao dram, a existência e a intermitência, interpretação de sonhos, traduções de línguas mortas para as linguagens do olhar e do gesto. Mas não de carros.
Um dia disseram-lhe:
- Comprei este veículo, porque dentro do segmento dá-me garantias. Não me dará problemas ao nível do diferencial e do semi-eixo, porque ao nível da transmissão é do melhor que aí anda. E sabes que mais: a junta da cabeça é prova de...
Ele morreu.
Grandes heróis tinham grandes inimigos. Batman enfrentava Joe Chill, Prof. Hugo Strange, The Joker, Catwoman, Clayface, Scarecrow, Penguin, Two-Face, The Riddler, Mad Hatter, Deadshot, Mr. Freeze, Poison Ivy, Man-Bat, Talia al Ghul, Ventriloquist, Scarface…
Ele morreu só assim, de tédio, sem trunfos, batido por um ás do volante.
Ela traficava brindes de jornais na livraria da rua.
- Xiu, não dê estrilho, venha aqui ao canto.
E lá ia eu, perguntar pelo DVD do James Bond que saiu com o Público. Passava por peluches grandes e um aparador com revistas e meia dúzia de brinquedos para a praia que ninguém levou.
- Tenho isso aqui para clientes especiais, ouvi dizer que está esgotado em toda a parte, mas eu tenho aqui meia dúzia para clientes especiais. Você quer ser meu cliente especial?
Eu disse que sim, meio a medo. Tão a medo que consegui dividir a palavra sim em duas sílabas: sí – im.
- Tome lá, leve lá o produto e dê-me cá 7 euros e 85 cêntimos. Até tinha que comprar também o Público de hoje, mas como você é cliente especial, eu deixo-o ir embora assim só por esse preço. É preço para clientes especiais, esse.
Sai da loja, guardei o DVD debaixo do casaco, sabia que tinha o mundo a olhar para mim, que todas as pessoas da rua estavam nas varandas e que as outras, as que não estavam na minha rua, estavam a ver-me também, de uma maneira que eu não sabia como.
Em cada um de nós há um herói que nos morre a cada conversa sem que saibamos porquê e um criminoso que queremos mostrar só um bocadinho.
Monday, October 29, 2007
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