Domingos Casaca era um dos quatrocentos habitantes do Corvo, quase, quase no extremo ocidental da Europa, não fora a vizinha ilha das Flores. Desde miúdo se habituara a admirar a falésia da escarpa oeste, filha do findo vulcão, setecentos metros sobre as ondas, colossal vela soprada ao azul. Era a sua solução para a falta de realidades na ilha, um bocado de terra esquecido, amaldiçoado pelos criadores do Mundo na crista média atlântica, onde os ventos se apressam e as correntes se encontram para combinar caminhos.
Domingos tinha 20 anos, dinheiro da família, senhora das poucas terras disponíveis para plantar. Órfão, tinha um tio em São Miguel que abrira restaurantes e o tratava, ainda que à distância, com carinhos, atenções e mesadas de pai.
Domingos abriu uma loja de negócios a que chamou isso mesmo: Loja de Negócios. Uma fracassada armadilha para o tédio. Quis abrir minas de areia, engenhocas para fazer curvas na fruta, aparelhos silenciadores de cães, gatos e galos, casas com vista para o mar; coisa que numa ilha é o mesmo que valorizar uma casa pelo indispensável telhado. De que vale uma casa com vista para o mar quando todas as outras a partilham? As coisas valem pelo que são ou pela diferença?
Nunca o levaram a sério. Domingos Casaca era a zombaria da ilha, ganhava os finais de tarde a deixar o amarelo do sol entrar-lhe nos olhos como uma lente, sentado num morro, numa natural injecção de lítio. Ao longe, para lá das conversas acústicas das baleias, concebia a América. Gostava tanto do morro onde sonhava que o comprou por tuta-e-meia, como um pedaço de Lua em saldo.
Passaram-se 50 milhões de anos e a placa tectónica da América do Norte continuou a rodar monstruosamente e a afastar o Corvo das outras ilhas dos Açores. Hoje, a enorme falésia da ilha tem já vista para Manhattan. Foi um negócio de visão, o de Domingos, o único que resultaria realmente se ele, 50 milhões de anos depois, o pudesse festejar ao vento.
Monday, August 13, 2007
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11 comments:
belíssimo.
Mas de onde vêm estas ideias!?
Very nice! Continua.
mi de sétima: muito obrigado, volta sempre.
maria joão: sê bem regressada. vêm de mim, pois.
É que gosto mm deste blog. Não sei se já referi que o descobri através do jornal Público que publicou um excerto do texto dos Santos Populares.
Muito obrigado, miúda. Não fazia ideia disso que me contas, do excerto do Público sobre estas coisas que aqui se passam. Eu até costumo comprar o Público, mas não dei por nada. Já agora, se puderes, diz-me em que dia foi isso, para eu ver isso. Confesso que fiquei curioso.
Estou a ficar preocupado. Atendendo à esperança media de vida ainda ca estarei + 50 anos. Assim, safo-me! fala-se de milhões de anos....
Paulo
paulo sempre: moras na ilha do corvo? se não morares, é na boa, não te preocupes
Como calculas, não guardei o jornal. Mas foi logo a seguir à noite dos Santos, muito provavelmente no dia seguinte.
Por acaso fiquei surpreendida de não ver mais gente no blog a partir dessa data. Mas os que estão, estão muito bem!!
Isto há cada coincidência! Não é que acabei de passar em frente ao muro dedicado à Cátia Rosa!
Incrível, incrível...
Coincidência grande, essa. Ou é o mesmo, ou então alguém abriu uma série de sucursais de ofensa à mesma pessoa, o que seria estranho.
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