Thursday, August 9, 2007

Memória do ferro velho

A rua era enviesada, um caminho bêbado, talvez um quilómetro ladeado de garagens e espaços abertos de carros amontoados. Era o que se podia querer de vez em quando aos sábados de manhã, na companhia do pai ou do avô, ora à procura de partes para o Ford Escort, mais raro, ora em jeito de passeio, na senda de peças que pudessem interessar para as reparações do avô.

Uma alegre manhã de destruições. Imaginar os despistes que contorciam os carros daquela maneira, hipnotizado pelo horror, como se os carros andassem sozinhos e se destruíssem para nosso bizarro espanto contra muros ou contra outros. Havia sempre as peças que se queriam. Sempre um carro daquela marca que estava partido em todo o lado menos naquele que se desejava intacto. Um retrovisor direito, um vidro de trás, uma jante, um tablier, uma grelha. Eternamente um senhor, o demónio daquele inferno, a descer gordo, a rebolar, de um patamar superior, um palácio de pneus, aromas de borracha nova e queimada, um cheiro indeciso no tempo.

O tinhoso cumprimentava toda a gente com ilusória predilecção. Parecia conhecer há muito o meu avô, há menos o meu pai. Eu parecia-lhe sempre novo por mais vezes que lá tivesse ido. Perguntava o meu nome, separava-me os caracóis do cabelo com uma mão de preto fluorescente de óleo que ao lado escorria de um carro para um alguidar e depois para o esgoto, deixando pingas no chão de cimento, pingas que tatuam, que jamais dali saem.

O demónio tinha sempre as partes das coisas antes inteiras. Das poucas vezes que não, descansava o cliente, arranjá-las-ia quanto antes noutro lado, como se encomendasse os desastres ou ele mesmo os provocasse. Para vender os azares e as tristezas dos outros aos bocados que, então sem pensarmos nisso, ele trazia até nós como dádivas.

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