Sunday, March 25, 2007

Importância dos pêlos

Era criança e jurava que o meu pai vinha do urso e não do macaco, tal o tapete que lhe cobria peito e costas. O pêlo intriga-me. Li que no futuro iremos perdê-lo, é desnecessário, tem insignificante influência no aquecimento corporal, é um resto do que fomos, grudado até que varrido pelas baforadas dos milénios vindouros. Nem as sobrancelhas sobrarão na raça, seremos pálida mancha de pele.

Acho, assim: tenho menos e sou mais evoluído que o meu pai, que por si era mais evoluído que o urso. Este atalho genealógico, convenho, desabona-me. Acontece que o cabelo ainda é, entendo, importante magneto da espécie. Reparem, tudo junto, como pode condicionar a reprodução: penteado, pêlo no sovaco, nas pernas, na púbis, sobrancelha de fino risco, rímel na pestana. Não há pêlos inferiores, todos participam.

Da minha parte: cabelo curto, rapado ou comprido, barba feita ou rarefeita, caracóis no peito, ter ou não nas costas, são parâmetros que atraem ou repelem a fêmea. Em parte, somos pêlos. Quando se forem, passaremos a ponte que segue da identidade para o simplesmente idêntico.

Relembro, a propósito de identidade, que um puto se sente homem pela primeira vez ao ver um urso que faz a barba de manhã e nos põe espuma na bochecha para, depois, raspar a lâmina na pele imberbe. O pai, de seguida, sai para o trabalho, a mãe dorme. Não há problema, porque fica o outro urso da casa a tomar conta, ainda que tenha seis anos. Que o futuro não me leve os pêlos.

Saturday, March 24, 2007

Eu, maior português de sempre

Tenho cá para mim que se Afonso vencer a votação do maior português de sempre significa que, não sendo Afonso originalmente português – ninguém nasce no país que funda — não houve, jamais, um grande português. Logo, aqui me vendo: não sou alto, tenho um metro e setenta e nove, nem pesado, peso 78 quilos, nem assinalavelmente bonito, por muito que a minha mulher e a minha mãe se esforcem em desmentidos e direitos de resposta. Inclinam-se ao sabor das minhas opções capilares, segundo percebo.

Também estou longe de ser verdadeiramente brilhante, brilho intensamente mas só às vezes; tal como estou a milhas de ser considerado estúpido; sou, justifico-me, distraído e tenho o córtex talhado para grandes questões do universo o que me leva a atenção que deveria dispensar ao mundano.

Por estas minhas qualidades transversais, se vencer Afonso e, repito, nunca tiver existido um grande português, é justo cingir a votação ao melhor português médio de sempre. Nessa escolha serei muito competitivo. Não se deve, contudo, confundir com o melhor médio português de sempre, Rui Costa, D. Rui Costa, D. Rui Costa I.

Bem, isto faria tudo sentido não fora existir a aldeia de Folgosinho, a onze quilómetros de Gouveia, como quem sobe a Serra da Estrela. Lá se conta que, desmentindo os viseenses, o lusitano Viriato tem raízes. Se as tem ignoro, porém confirmo a existência de uma estátua onde pode ler-se «A Viriato, natural e fundador de Folgosinho».

Prova isto então que, ao contrário do que pensava quando comecei a escrever este texto, é mesmo possível nascer-se no local que se funda e, logo, Afonso pode mesmo ter sido português antes de ter inventado Portugal. Sou mesmo um português médio, desilusão.

Prolixo, verboso e gongórico

Ouvi alguém dizer a uma plateia: «Ocasionalmente, se me torno prolixo, acabo por ser verboso e gongórico e não me entendem.»

Espantei-me e apeteceu-me dizer:
- Às vezes, quando falo muito tempo, acabo por exagerar e por usar demasiadas palavras, mas felizmente entendem-me sempre.

Friday, March 23, 2007

Não tenho assim tantos amigos

O comando sem fio da nova Play Station 3 detecta movimentos oscilantes e é possível ligar sete deles à consola. Não tenho assim tantos amigos. Custa 600 euros e também acho que não tenho assim tanto dinheiro. O que tenho são saudades daqueles jogos em que havia duas raquetas que só subiam ou desciam na esquerda e na direita do ecrã e uma bolinha que ia de uma para a outra. Só davam para duas pessoas e nunca senti falta de mais. Custava menos de 600 euros. Não sou maldizente, aceito o futuro, gosto dele, admiro-o, no entanto acontece que é mesmo a sério: não tenho assim tantos amigos e estimo tanto a tecnologia que vem a caminho como aquela que há muito se foi. Sou uma espécie de meio-termo tecnológico, sou uma Play Station 1,5. Gabo-me de possuir um gravador de DVD, eu, que tinha dificuldades em deixar o vídeo a gravar. Sou meio a cores, meio a preto e branco, meio home cinema, meio som mono, meio comando à distância meio palmada à laia de Alcântara na lateral da televisão para ajustar a imagem. As televisões novas, enfezaditas, nem cabedal têm para levar uma cacetada.

Thursday, March 22, 2007

Óculos de sol graduados


Não percebes, às vezes não entendes, sejas quem fores. Se ganhasse o euromilhões, a única coisa que faria era comprar óculos graduados, que sou míope, daqueles de sol. Incomoda-me isto de precisar de óculos para chegar às coisas que estão longe e ao mesmo tempo precisar de outros que me protejam de algo tão longe como o sol. Sou sensível. Sensível, que é isso de ser sensível, perguntas. É quando uma pulga a pousar num cão nos parece uma bomba atómica, dizia esse tal de Jeff Buckley, que para mim não era mais do que um mendigo no metro, na estação de Arroios, a cantar clássicos de Natal com um órgão. Sem esses óculos que desejo rebentam-me bombas atómicas nos olhos. Se ganhasse o euromilhões comprava apenas isso: óculos de sol graduados, porque assim que comprasse outra coisa digna de tanto dinheiro deixava de ser eu. Só quero o que me falta e precisava de uns óculos de sol graduados, que me ficariam em cento e tal euros. E de uns ténis, vá, que estes descolaram aqui, se calhar num voo para o sol. Isto sem o sol dava-me muito mais jeito. Tu compravas o quê? Compravas coisas que nem sabes bem o que são?

Saturday, March 17, 2007

Outras cafeínas

Café fascina-me. Chegou ao fascinar-me ao ponto de beber sete, percebia-o quando em vão procurava na carteira uma nota de cinco afinal esquartejada. Ainda não percebi se gosto realmente, ainda que me fascine. Alguns sabem-me bem. Todavia há um, diariamente, que me tiram queimado. Parece-me remédio, bebo-o de trago. Ir ao café é para lá de bebê-lo, todos os reconhecem. Quem nunca apostou, um dia, num vamos beber cafezinho como sinónimo de apetece-me ver-te rodar a chávena entre os dedos? Aposto que depois de mexido por ti o café dispensa açúcar. És um pauzinho de canela.

Wednesday, March 7, 2007

Admirável mau gosto



Antoni Gaudi, além de, coitado, ter um nome ridículo, é culpado de quase tudo. O Parque Guell desilude até as crianças, porque, reclamam, é um parque e não tem baloiços. Depois, entendo que colar azulejos e vidrinhos coloridos em edifícios de formato duvidoso, eventualmente ruinosos ao primeiro repelão de terramoto, é, vá lá, disforme. Chamam-lhe modernismo catalão, ainda hoje. Têm piada estes movimentos artísticos que deixam o tempo em suspenso, a atropelar tudo. Gosto especialmente do pós-moderno, que não sei bem o que é; ou mesmo do futurismo. Têm o seu quê de vaidosa afronta, concedo.
Em La Pedrera, conta-se que um inquilino questionou uma vez Gaudi a propósito de um piano que não fazia sentido na sala, porque esta não tinha uma única parede direita. Gaudi sugeriu-lhe um violino. Disto gosto: tinha sentido de humor e, nesse sentido, vale tudo, até aquilo da Sagrada Família. Ainda não percebi se a estão a completar ou a parti-la aos bocados para fazer de novo. Fica numa estranha fronteira do espanto. Simples: espantoso em português é positivo, mas em castelhano é exactamente o contrário, algo negativo, um antónimo. E mais: em catalão, Gaudi significa prazer. Tem relação com o nosso gáudio. Antónimo Gáudio, de admirável mau gosto. Se alguém não gostar deste texto que lhe cole vidrinhos às cores que talvez se leia melhor. Chamem-lhe, depois, pós-texto.