Era criança e jurava que o meu pai vinha do urso e não do macaco, tal o tapete que lhe cobria peito e costas. O pêlo intriga-me. Li que no futuro iremos perdê-lo, é desnecessário, tem insignificante influência no aquecimento corporal, é um resto do que fomos, grudado até que varrido pelas baforadas dos milénios vindouros. Nem as sobrancelhas sobrarão na raça, seremos pálida mancha de pele.
Acho, assim: tenho menos e sou mais evoluído que o meu pai, que por si era mais evoluído que o urso. Este atalho genealógico, convenho, desabona-me. Acontece que o cabelo ainda é, entendo, importante magneto da espécie. Reparem, tudo junto, como pode condicionar a reprodução: penteado, pêlo no sovaco, nas pernas, na púbis, sobrancelha de fino risco, rímel na pestana. Não há pêlos inferiores, todos participam.
Da minha parte: cabelo curto, rapado ou comprido, barba feita ou rarefeita, caracóis no peito, ter ou não nas costas, são parâmetros que atraem ou repelem a fêmea. Em parte, somos pêlos. Quando se forem, passaremos a ponte que segue da identidade para o simplesmente idêntico.
Relembro, a propósito de identidade, que um puto se sente homem pela primeira vez ao ver um urso que faz a barba de manhã e nos põe espuma na bochecha para, depois, raspar a lâmina na pele imberbe. O pai, de seguida, sai para o trabalho, a mãe dorme. Não há problema, porque fica o outro urso da casa a tomar conta, ainda que tenha seis anos. Que o futuro não me leve os pêlos.
Sunday, March 25, 2007
Saturday, March 24, 2007
Eu, maior português de sempre
Tenho cá para mim que se Afonso vencer a votação do maior português de sempre significa que, não sendo Afonso originalmente português – ninguém nasce no país que funda — não houve, jamais, um grande português. Logo, aqui me vendo: não sou alto, tenho um metro e setenta e nove, nem pesado, peso 78 quilos, nem assinalavelmente bonito, por muito que a minha mulher e a minha mãe se esforcem em desmentidos e direitos de resposta. Inclinam-se ao sabor das minhas opções capilares, segundo percebo.
Também estou longe de ser verdadeiramente brilhante, brilho intensamente mas só às vezes; tal como estou a milhas de ser considerado estúpido; sou, justifico-me, distraído e tenho o córtex talhado para grandes questões do universo o que me leva a atenção que deveria dispensar ao mundano.
Por estas minhas qualidades transversais, se vencer Afonso e, repito, nunca tiver existido um grande português, é justo cingir a votação ao melhor português médio de sempre. Nessa escolha serei muito competitivo. Não se deve, contudo, confundir com o melhor médio português de sempre, Rui Costa, D. Rui Costa, D. Rui Costa I.
Bem, isto faria tudo sentido não fora existir a aldeia de Folgosinho, a onze quilómetros de Gouveia, como quem sobe a Serra da Estrela. Lá se conta que, desmentindo os viseenses, o lusitano Viriato tem raízes. Se as tem ignoro, porém confirmo a existência de uma estátua onde pode ler-se «A Viriato, natural e fundador de Folgosinho».
Prova isto então que, ao contrário do que pensava quando comecei a escrever este texto, é mesmo possível nascer-se no local que se funda e, logo, Afonso pode mesmo ter sido português antes de ter inventado Portugal. Sou mesmo um português médio, desilusão.
Também estou longe de ser verdadeiramente brilhante, brilho intensamente mas só às vezes; tal como estou a milhas de ser considerado estúpido; sou, justifico-me, distraído e tenho o córtex talhado para grandes questões do universo o que me leva a atenção que deveria dispensar ao mundano.
Por estas minhas qualidades transversais, se vencer Afonso e, repito, nunca tiver existido um grande português, é justo cingir a votação ao melhor português médio de sempre. Nessa escolha serei muito competitivo. Não se deve, contudo, confundir com o melhor médio português de sempre, Rui Costa, D. Rui Costa, D. Rui Costa I.
Bem, isto faria tudo sentido não fora existir a aldeia de Folgosinho, a onze quilómetros de Gouveia, como quem sobe a Serra da Estrela. Lá se conta que, desmentindo os viseenses, o lusitano Viriato tem raízes. Se as tem ignoro, porém confirmo a existência de uma estátua onde pode ler-se «A Viriato, natural e fundador de Folgosinho».
Prova isto então que, ao contrário do que pensava quando comecei a escrever este texto, é mesmo possível nascer-se no local que se funda e, logo, Afonso pode mesmo ter sido português antes de ter inventado Portugal. Sou mesmo um português médio, desilusão.
Prolixo, verboso e gongórico
Ouvi alguém dizer a uma plateia: «Ocasionalmente, se me torno prolixo, acabo por ser verboso e gongórico e não me entendem.»
Espantei-me e apeteceu-me dizer:
- Às vezes, quando falo muito tempo, acabo por exagerar e por usar demasiadas palavras, mas felizmente entendem-me sempre.
Espantei-me e apeteceu-me dizer:
- Às vezes, quando falo muito tempo, acabo por exagerar e por usar demasiadas palavras, mas felizmente entendem-me sempre.
Friday, March 23, 2007
Não tenho assim tantos amigos
O comando sem fio da nova Play Station 3 detecta movimentos oscilantes e é possível ligar sete deles à consola. Não tenho assim tantos amigos. Custa 600 euros e também acho que não tenho assim tanto dinheiro. O que tenho são saudades daqueles jogos em que havia duas raquetas que só subiam ou desciam na esquerda e na direita do ecrã e uma bolinha que ia de uma para a outra. Só davam para duas pessoas e nunca senti falta de mais. Custava menos de 600 euros. Não sou maldizente, aceito o futuro, gosto dele, admiro-o, no entanto acontece que é mesmo a sério: não tenho assim tantos amigos e estimo tanto a tecnologia que vem a caminho como aquela que há muito se foi. Sou uma espécie de meio-termo tecnológico, sou uma Play Station 1,5. Gabo-me de possuir um gravador de DVD, eu, que tinha dificuldades em deixar o vídeo a gravar. Sou meio a cores, meio a preto e branco, meio home cinema, meio som mono, meio comando à distância meio palmada à laia de Alcântara na lateral da televisão para ajustar a imagem. As televisões novas, enfezaditas, nem cabedal têm para levar uma cacetada.
Thursday, March 22, 2007
Óculos de sol graduados
Não percebes, às vezes não entendes, sejas quem fores. Se ganhasse o euromilhões, a única coisa que faria era comprar óculos graduados, que sou míope, daqueles de sol. Incomoda-me isto de precisar de óculos para chegar às coisas que estão longe e ao mesmo tempo precisar de outros que me protejam de algo tão longe como o sol. Sou sensível. Sensível, que é isso de ser sensível, perguntas. É quando uma pulga a pousar num cão nos parece uma bomba atómica, dizia esse tal de Jeff Buckley, que para mim não era mais do que um mendigo no metro, na estação de Arroios, a cantar clássicos de Natal com um órgão. Sem esses óculos que desejo rebentam-me bombas atómicas nos olhos. Se ganhasse o euromilhões comprava apenas isso: óculos de sol graduados, porque assim que comprasse outra coisa digna de tanto dinheiro deixava de ser eu. Só quero o que me falta e precisava de uns óculos de sol graduados, que me ficariam em cento e tal euros. E de uns ténis, vá, que estes descolaram aqui, se calhar num voo para o sol. Isto sem o sol dava-me muito mais jeito. Tu compravas o quê? Compravas coisas que nem sabes bem o que são?
Saturday, March 17, 2007
Outras cafeínas
Café fascina-me. Chegou ao fascinar-me ao ponto de beber sete, percebia-o quando em vão procurava na carteira uma nota de cinco afinal esquartejada. Ainda não percebi se gosto realmente, ainda que me fascine. Alguns sabem-me bem. Todavia há um, diariamente, que me tiram queimado. Parece-me remédio, bebo-o de trago. Ir ao café é para lá de bebê-lo, todos os reconhecem. Quem nunca apostou, um dia, num vamos beber cafezinho como sinónimo de apetece-me ver-te rodar a chávena entre os dedos? Aposto que depois de mexido por ti o café dispensa açúcar. És um pauzinho de canela.
Wednesday, March 7, 2007
Admirável mau gosto
Antoni Gaudi, além de, coitado, ter um nome ridículo, é culpado de quase tudo. O Parque Guell desilude até as crianças, porque, reclamam, é um parque e não tem baloiços. Depois, entendo que colar azulejos e vidrinhos coloridos em edifícios de formato duvidoso, eventualmente ruinosos ao primeiro repelão de terramoto, é, vá lá, disforme. Chamam-lhe modernismo catalão, ainda hoje. Têm piada estes movimentos artísticos que deixam o tempo em suspenso, a atropelar tudo. Gosto especialmente do pós-moderno, que não sei bem o que é; ou mesmo do futurismo. Têm o seu quê de vaidosa afronta, concedo.
Em La Pedrera, conta-se que um inquilino questionou uma vez Gaudi a propósito de um piano que não fazia sentido na sala, porque esta não tinha uma única parede direita. Gaudi sugeriu-lhe um violino. Disto gosto: tinha sentido de humor e, nesse sentido, vale tudo, até aquilo da Sagrada Família. Ainda não percebi se a estão a completar ou a parti-la aos bocados para fazer de novo. Fica numa estranha fronteira do espanto. Simples: espantoso em português é positivo, mas em castelhano é exactamente o contrário, algo negativo, um antónimo. E mais: em catalão, Gaudi significa prazer. Tem relação com o nosso gáudio. Antónimo Gáudio, de admirável mau gosto. Se alguém não gostar deste texto que lhe cole vidrinhos às cores que talvez se leia melhor. Chamem-lhe, depois, pós-texto.
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