Monday, August 13, 2007

Uma ideia para 50 milhões de anos

Domingos Casaca era um dos quatrocentos habitantes do Corvo, quase, quase no extremo ocidental da Europa, não fora a vizinha ilha das Flores. Desde miúdo se habituara a admirar a falésia da escarpa oeste, filha do findo vulcão, setecentos metros sobre as ondas, colossal vela soprada ao azul. Era a sua solução para a falta de realidades na ilha, um bocado de terra esquecido, amaldiçoado pelos criadores do Mundo na crista média atlântica, onde os ventos se apressam e as correntes se encontram para combinar caminhos.
Domingos tinha 20 anos, dinheiro da família, senhora das poucas terras disponíveis para plantar. Órfão, tinha um tio em São Miguel que abrira restaurantes e o tratava, ainda que à distância, com carinhos, atenções e mesadas de pai.

Domingos abriu uma loja de negócios a que chamou isso mesmo: Loja de Negócios. Uma fracassada armadilha para o tédio. Quis abrir minas de areia, engenhocas para fazer curvas na fruta, aparelhos silenciadores de cães, gatos e galos, casas com vista para o mar; coisa que numa ilha é o mesmo que valorizar uma casa pelo indispensável telhado. De que vale uma casa com vista para o mar quando todas as outras a partilham? As coisas valem pelo que são ou pela diferença?

Nunca o levaram a sério. Domingos Casaca era a zombaria da ilha, ganhava os finais de tarde a deixar o amarelo do sol entrar-lhe nos olhos como uma lente, sentado num morro, numa natural injecção de lítio. Ao longe, para lá das conversas acústicas das baleias, concebia a América. Gostava tanto do morro onde sonhava que o comprou por tuta-e-meia, como um pedaço de Lua em saldo.

Passaram-se 50 milhões de anos e a placa tectónica da América do Norte continuou a rodar monstruosamente e a afastar o Corvo das outras ilhas dos Açores. Hoje, a enorme falésia da ilha tem já vista para Manhattan. Foi um negócio de visão, o de Domingos, o único que resultaria realmente se ele, 50 milhões de anos depois, o pudesse festejar ao vento.

Saturday, August 11, 2007

Cátia Rosa escrita na parede

A Cátia Rosa dá a cona e o cu a todos, lê-se num muro ao lado de uma paragem de autocarro. De uma perspectiva gramatical, identifico com gosto a correcção do texto, o uso de maiúsculas nos nomes, a exactidão dos acentos. Poderia, se quisesse, questionar o predicado, porém.
, do verbo dar, é inadequado. Escolheria antes A Cátia Rosa aluga a cona e o cu a todos, ou mesmo empresta. Ainda que, se é perfeição que busco, prefira disponibiliza, que me parece uma espécie de empréstimo à vista, isto é: usa que eu deixo, mas não penses que me vou embora e ficas sozinho com o que é meu, nada disso, podes usar, contudo eu fico aqui a ver se não estragas.
É, claramente, de disponibilizar que se trata.

Além de ilegal, porque é proibido escrever em muros com sprays, ainda que a mensagem seja, como é, de amor, ignoro até onde abonará a favor da senhora Cátia Rosa, que eu desconheço e por isso assim trato e considero.
Dar a cona e o cu a todos parece-me uma generalização absurda. Primeiro, o complemento todos abarca uma quantidade de seres que facilmente extrapola as fronteiras da possibilidade, alargando-se imparavelmente para sexos, raças e até espécies. A todos, portanto, soa-me a bem mais que um exagero, acima de hipérbole, é, claramente, uma impossibilidade e por isso perde crédito e até nomeação gramatical. Seria o mesmo que dizer: vou ali almoçar e depois, finda a digestão, vou, como é meu hábito desde há muito, cagar à Lua. Ninguém me levaria a sério e eu compreenderia as razões.

Só concebo o uso da palavra todos porque confere, indesmentivelmente, energia. Se a tirada fosse A Cátia Rosa dá a cona e o cu a quase todos, pareceria menos austera, pois reservar-lhe-ia, a priori, à senhora Cátia, particularidades de selecção que talvez não possua.

Se fosse dá a cona e o cu a quatro ou cinco, permaneceria com má reputação, no entanto essa opção levaria a que alguém perguntasse por baixo, num spray de outra cor: a quem? quem são os cinco? Isso poderia, pois, conduzir a um diálogo de estranhos num muro, gestos, repito, ilegais.

Se fosse A Cátia Rosa dá a cona e o cu ao Luís, isso, para quem passa e não conhece nem um nem outro, de pouco vale como ofensa e muito menos como entretém. É da vida de cada um, conjugal, ninguém tem nada a ver com isso. Ainda que aumente a precisão, perde-se, curiosamente, o anterior mundo de possibilidades.

A frase está, estranhamente, riscada, as letras horizontalmente atravessadas, o que conduz a questão para outro domínio: quem redigiu e quem reprovou? O autor só a riscaria se porventura se tivesse enganado a escrevê-la. Imagine-se o horror de ortografar tal obra de arte e depois atestar que se tinha colocado, sabe-se lá porque paragem cerebral, um acento circunflexo no o da palavra cona: côna. Só mesmo riscá-la logo de seguida para ninguém dar por isso.

Parece-me, continuando, num assomo de perspicácia, que terá sido Cátia Rosa a riscar. Tinha afastado à partida a possibilidade de a frase ser um classificado, pois não havia número de telefone com ela, nem sequer referência ao grau universitário de dona Cátia. Era, antes, sem dúvidas, uma opção de enxovalho, até pela crueza, despida de eufemismos, manifestada na escolha criteriosa dos termos.

E quem escreveu?
Perguntaram-me num dia destes, naquilo que foi para mim um constrangedor momento, se eu sabia quantos tipos de mulheres há. Atrapalhado e ignorante, devolvi: como assim?
«Três: as santas, que andam só com um; as putas, que andam com todos; e ainda as filhas da puta, que andam com todos menos comigo! Hahahahaha», responderam-me.

Não descubro interesse na anedota, primária graçola de aldeão, todavia a ordem do raciocínio exposto ajuda-me a concluir que quem escreveu foi, justamente, alguém a quem Cátia Rosa nada deu. E assim se explica, ainda, o risco que ela fez na frase, que para o autor resultará subentendidamente numa espécie de: confirmo, dei a todos menos a ti. Ainda que isso lá não esteja escrito, pois é ilegal escrever em muros e Cátia Rosa disponibiliza o que é dela não anda a roubar para disponibilizar aos outros. Grande Cátia Rosa, dá-lhes.

Thursday, August 9, 2007

Memória do ferro velho

A rua era enviesada, um caminho bêbado, talvez um quilómetro ladeado de garagens e espaços abertos de carros amontoados. Era o que se podia querer de vez em quando aos sábados de manhã, na companhia do pai ou do avô, ora à procura de partes para o Ford Escort, mais raro, ora em jeito de passeio, na senda de peças que pudessem interessar para as reparações do avô.

Uma alegre manhã de destruições. Imaginar os despistes que contorciam os carros daquela maneira, hipnotizado pelo horror, como se os carros andassem sozinhos e se destruíssem para nosso bizarro espanto contra muros ou contra outros. Havia sempre as peças que se queriam. Sempre um carro daquela marca que estava partido em todo o lado menos naquele que se desejava intacto. Um retrovisor direito, um vidro de trás, uma jante, um tablier, uma grelha. Eternamente um senhor, o demónio daquele inferno, a descer gordo, a rebolar, de um patamar superior, um palácio de pneus, aromas de borracha nova e queimada, um cheiro indeciso no tempo.

O tinhoso cumprimentava toda a gente com ilusória predilecção. Parecia conhecer há muito o meu avô, há menos o meu pai. Eu parecia-lhe sempre novo por mais vezes que lá tivesse ido. Perguntava o meu nome, separava-me os caracóis do cabelo com uma mão de preto fluorescente de óleo que ao lado escorria de um carro para um alguidar e depois para o esgoto, deixando pingas no chão de cimento, pingas que tatuam, que jamais dali saem.

O demónio tinha sempre as partes das coisas antes inteiras. Das poucas vezes que não, descansava o cliente, arranjá-las-ia quanto antes noutro lado, como se encomendasse os desastres ou ele mesmo os provocasse. Para vender os azares e as tristezas dos outros aos bocados que, então sem pensarmos nisso, ele trazia até nós como dádivas.

Thursday, August 2, 2007

Morte aos pinguins


Voltando aos animais, tema em mim recorrente. Se um dia eu for estudado em faculdades – o que me parece improvável a não ser que a minha família doe o meu cadáver à ciência – irão referir-se a mim e aos meus textos como aquele que falava de animais.
Pinguins.
O pinguim é um bicho que desperta simpatia a qualquer que seja a mulher e a cerca de 80 por cento dos homens. O pinguim hipnotiza por razões que ainda não foram apuradas. O estado de queridismo – deriva de querido – em que a generalidade dos pinguins se encontra é um dos mistérios da fauna.
É por isso que reduzi-lo ao ridículo, ainda que também eu nutra por ele simpatia, me parece interessante. Vejamos: começa por ser ave não voadora, o que é quase como um cão que não ladra ou um gato com vertigens. Eu sei que há mais aves que não voam, mas não é sobre elas que falamos.
É, ainda, um totó. Fica a chocar os ovos enquanto a respectiva vai para o bem bom, nadar, à procura de alimento.
Termino com uma lista de espécies que não deixa dúvidas sobre a palermice: pinguim-imperador, pinguim-rei, pinguim de Adélia, pinguim-de-barbicha, pinguim-saltador-de-rocha, pinguim-macaroni, pinguim-azul, pinguim de Magalhães.
Para não falar do próprio nome: pinguim, que me soa espirro e me deixa uma sensação de comichão no nariz.
Que será dos pinguins quando gelo do planeta derreter? Lá terão de ir todos para cima dos frigoríficos, pois. Eu tenho lá um em casa, daqueles grandes, combinado. Ainda sou gajo para salvar quatro ou cinco, vá.