O meu dono convida as visitas a entrar-lhe na casa, atravessar a luta dos alguidares, as prateleiras dos móveis velhos, indecisas entre ceder ou suportar mais um ano de objectos acotovelados, fotografias paradas no tempo, círculos de pó das coisas que se foram embora, chateadas com aquilo.
«Venham por aqui que é melhor», sugere o meu dono, penteado pelo capacete da mota, enquanto empurra para a varanda. Eu na gaiola, arrulho, observado pela desconfiança desta gente nova que me desconhece conquistas, sou um campeão.
«Olhem-me esta vista, ninguém ma tira. O resto está velho, desarrumado, eu sei, desculpem-me lá», pede ele, coçando a cabeça. O capacete faz-lhe cócegas, viver sozinho resulta nisto: tudo se desarruma, coisas, cabelos, pensamentos. Os dias ficam, eles mesmos, desarrumados: às vezes começam de noite e acabam pela manhã. As tardes, aqui, no calor, estão sempre no mesmo sítio.
Lá fora, o Alentejo, desviando a roupa molhada no estendal e as meias rotas que talvez ninguém note, estão árvores bronzeadas, um azul da barragem do Maranhão muito ao longe, continuação do céu, para o outro lado: as casinhas baixas de Avis.
O meu dono acredita que o melhor que tem para oferecer às visitas, o melhor da sua casa, é o que está fora dela, mas engana-se: o melhor é quem está lá dentro.
E eu, Favita, parece que é isso que me chama quando sobrevoo a casa no final da prova, assobiando, rolando milho num púcaro. «Anda, Favita, anda para casa, acho que hoje ficamos em primeiro, anda campeão, 650 quilómetros em sete horas é o melhor tempo de sempre, anda Favita», ouço-o. E desço, saca-me a anilha rosa da pata, tenho quatro números desta vez, sou o 1756, cola a anilha num relógio grande com tanto pó que as horas e os tempos têm de ser adivinhados. Terminei em segundo, afinal.
«Venham por aqui que é melhor», sugere o meu dono, penteado pelo capacete da mota, enquanto empurra para a varanda. Eu na gaiola, arrulho, observado pela desconfiança desta gente nova que me desconhece conquistas, sou um campeão.
«Olhem-me esta vista, ninguém ma tira. O resto está velho, desarrumado, eu sei, desculpem-me lá», pede ele, coçando a cabeça. O capacete faz-lhe cócegas, viver sozinho resulta nisto: tudo se desarruma, coisas, cabelos, pensamentos. Os dias ficam, eles mesmos, desarrumados: às vezes começam de noite e acabam pela manhã. As tardes, aqui, no calor, estão sempre no mesmo sítio.
Lá fora, o Alentejo, desviando a roupa molhada no estendal e as meias rotas que talvez ninguém note, estão árvores bronzeadas, um azul da barragem do Maranhão muito ao longe, continuação do céu, para o outro lado: as casinhas baixas de Avis.
O meu dono acredita que o melhor que tem para oferecer às visitas, o melhor da sua casa, é o que está fora dela, mas engana-se: o melhor é quem está lá dentro.
E eu, Favita, parece que é isso que me chama quando sobrevoo a casa no final da prova, assobiando, rolando milho num púcaro. «Anda, Favita, anda para casa, acho que hoje ficamos em primeiro, anda campeão, 650 quilómetros em sete horas é o melhor tempo de sempre, anda Favita», ouço-o. E desço, saca-me a anilha rosa da pata, tenho quatro números desta vez, sou o 1756, cola a anilha num relógio grande com tanto pó que as horas e os tempos têm de ser adivinhados. Terminei em segundo, afinal.
Sei de pássaros que fogem das gaiolas. Se calhar migram para as grandes cidades, onde as aves, contou-me um pardalito, descansam em monumentos e há comida pelo chão. E eu, aqui no Alentejo, que me soltam tão longe e volto sempre.