Saturday, June 30, 2007

Futebol cultural

Para mim, o meu pai só chorou duas vezes: a primeira foi há pouco mais de um ano, quando lhe morreu o pai, a segunda há tantos que me esqueci quantos. O número é tão disperso que ilude a contabilidade, só o coloco no espaço: à saída do estádio, a gente tinha perdido o jogo, descíamos numa multidão para a rua. As vozes ralhavam, eu comparava as razões do fracasso. Não há memória de um desaire sem explicação ou mesmo de um que tenha apenas uma.
Tinha o braço direito esticado para cima e a mão agarrada à esquerda do meu pai com toda a força dos músculos. O meu pai tinha lágrimas que ainda hoje não compreendo. Não me lembro do jogo, de tão absorvente tudo o resto depois dele. O futebol era aquilo, eram lágrimas.


Muitos anos mais tarde, na faculdade, admirei um professor clássico, barbicha branca, óculos, cabelo comprido, inteligência chapada, ensinava filosofia antiga como quem conta histórias. Gostava de pré-socráticos, ele.
Quando um aluno, sem saber onde se metia, mandou vir com a menoridade do futebol – as relações entre o jogo e as letras da Antiguidade Clássica são surpreendentes – por pouco não levou uma docente chapada de um mestre irado nos seis idiomas que dominava. Chamou-lhe, para a turma ouvir, coisas ainda mais forasteiras do que Anaxímenes de Mileto, Heráclito de Éfeso, Demócrito ou Xenófones de Colofon. O futebol, então, além de lágrimas, confirmou-se para mim como cultura. Como o cinema, a literatura, a música, a geografia, a política, a televisão. Não um ramo do saber, mas uma folha que não se deve deixar cair da árvore como uma triste mentalidade de Outono.


Por tudo isto, custa-me perceber quem se vangloria de nada saber de futebol, como se isso, obrigatoriamente, a tornasse dominadora de todos os outros assuntos que interessam. Como um cego, que de não ver apura os outros sentidos. Porém, acontece que ser cego para uma matéria chega a limitar a capacidade de relação com outras. Eu, se não sei de aeronáutica ou explicar, de maneira que se perceba, a teoria da relatividade, fico triste, informo-me, corrijo-me. Só as lágrimas do meu pai a segurar-me pela mão é que não percebo. Do resto, faço questão que nada me escape, agarro-me às coisas com toda a força dos músculos.

Friday, June 29, 2007

As t-shirts sentem

Cada mancha naquele trapo, uma medalha da vida, uma homenagem dos tempos.
- Se calhar é melhor mandares essa t-shirt fora.
Até as nódoas que desapareceram fazem parte dela. Noites de suor e cuspo, mais do que pingos de cerveja: pingos de várias marcas, nacionais e estrangeiras, quase um catálogo de cevadas; aqui e ali um ou outro resto de uma coisa qualquer, talvez vinho, uma bebida branca que nunca destoou numa camisola também ela branca, tela das memórias.
- Tem o colarinho descosido, acho que a deverias usar apenas para vir à praia e mesmo assim não sei bem.
Os tons amarelados debaixo dos braços, camadas dos jogos de futebol, talvez até um mau cheiro permanente que toda a gente vê bailar nos pelinhos do nariz. Menos eu. Um acastanhado de chocolate, um tom verde, muito disperso, de relva, parece-me também ao fundo encontrar algo de encarnado, que não sei se é de sangue de antanho ou do meu coração que agora se desfaz por dentro e me suja a roupa desta maneira.
- Por favor, não tragas mais essa t-shirt para a rua, usa-a só em casa. Para quando um dia for preciso pintar uma parede, ou isso.

Magoam-me, estas coisas. Sinto que nelas o tempo passa mais depressa do que nos relógios.
- Então pronto, fica na gaveta, não se manda fora, mas também não se veste. Fica guardada juntamente com as outras novas.

Isso.

Sunday, June 24, 2007

Carros bonitos e mulheres bonitas

Talvez se fosse elefante me recordasse, contudo não tenho memória de ver um automóvel bonito conduzido por uma mulher feia. Será por magia que uma senhora ao volante de um vistoso veículo seja sempre de especial beleza?

Proponho-me a colocação de série de possibilidades para análise.

1. Será a miúda gira só naquele automóvel?
2. Será aquele automóvel bom com qualquer miúda?
3. Será que as feias merecem, além de serem feias, ter de andar em carros maus, coitadas?
4. Se a miúda gira ao volante do tal automóvel me atropelar, será que lhe dou uma chapada na tromba e lhe chamo nomes e lhe digo «mas tu és estúpida ou quê? Não viste que ia na passadeira? És mesmo feia e tens um carro de merda, ainda por cima!» ?
5. E se uma feia me der uma boleia?

Não é fácil isto do mundo automóvel.

Monday, June 18, 2007

Gente que não cozinha

Uma fileira de frasquinhos de temperos: manjericão, orégãos, cravinho, cominhos, noz-moscada, pimentas, piri-piri, louro, paprika. Rolhados, tristes de tanta inutilização, ali a carpirem mágoas juntamente com os pratos do armário, vizinhos de cima no prédio dos aborrecimentos.
Ela entupia as amigas com as suas desculpas e incapacidade para cozinhar, que não dava, que as mulheres, hoje, devem despir-se dessa responsabilidade culinária, castradora de emancipações, que no tempo da avó é que os homens se conquistavam pelo estômago. Nunca percebera, porém, que aos homens, tal como às mulheres, se acede pela inteligência, pela sensibilidade e pela beleza, nem sempre por esta ordem, porém eternamente com este conteúdo.
A amiga, num dia em que foi almoçar lá a casa, ao cortar a película de plástico que cobria a tampa dos orégãos para dar sabor e cor à omeleta, tentou fazer-lhe ver que cozinhar não é de homem ou mulher, é de Homem, de espécie. Explicou-lhe que não ter mão para o sal é uma coisa, contudo ignorar que um bife precisa de sal é outra; que não saber usar uma gordura ou não perceber o funcionamento básico dos grelhados, fritos e cozidos ultrapassa pela direita o talento culinário e entra à má fila no cruzamento e no domínio da perspicácia. Grelhar, lembrou, é das mais básicas acções humanas, pré-histórica: pegar em carne crua e deixá-la queimar-se.
Ela claro, brilhante, devolveu-lhe a sugestão com uma interjeição imperceptível e escreveu na lista de compras pendurada na lateral do frigorífico, tudo em maiúsculas e com um fluorescente sublinhado: «NÃO SEI COSINHAR, NÃO SEI COSINHAR E NÃO COSINHO. TENHO DITO!». Assim mesmo, com erro ortográfico e tudo, dando prova de que as canetas, reveladoras ou traidoras da inteligência e do cuidado com as coisas, também deviam, às vezes, andar fechadas e infelizes de tanta inutilização, como os frasquinhos que nos temperam as ideias, os bifes, a vida.

Ficou-se no túnel a cinquenta

Ele ia desvairado, às turras com a vida, perdido nas suas ruas, com a Feira Popular à direita, ao comando do automóvel, de cotovelo esquerdo na porta e a palma direita nas mudanças. Acima do pavimento, a contraluz das estrelas, o painel avisava 50, piscava ameaçadoramente. Estranho haver ali cinquenta radares, pensou. Imaginou-os furtivos nos telhados, de miras escarlates nas suas testa e barriga, pontinhos de luz que rapidamente eram balas.
Tinha opções: descer o túnel do Campo Pequeno, à velocidade máxima de 50 – percebera então a que dizia respeito a certeza do número – ou continuar por cima, arriscando três semáforos. Optou pelo túnel, no entanto, a meio da encaracolada corrida, arriscou 55 e logo 60. Há noites em que só apetece acelerar, deixar o próprio vento para trás, transformar as curvas em rectas, esticar o pavimento, queimar a borracha, dominar a máquina.
Já do outro lado, na luz salpicada da noite da capital, cinquenta agentes da autoridade lhe bloqueavam a passagem, cinquenta velhas armas puxadas dos coldres poeirentos, cinquenta caras de mau e cinquenta ordens para sair do carro com as cinquenta mãos nas cinquenta cabeças, se as tivesse. Seria um duelo do Oeste, se eles não fossem cinquenta; era um cinquentelo.
- Deita-te já imediatamente no chão, já no chão, já, já, ou ainda te rebentamos os miolos, já no chão, já! Que merda é essa de vir a sessenta no túnel? Julgas que esta merda é a Bósnia?
Inconsciente da ameaça, arrecadou uma saraivada de cinco dezenas de balas na tromba, nos costados e no cachaço, abatido ali como um touro de morte à sombra da praça.
Para a próxima, reflectiu enquanto mordia os próprios dentes e o sangue lhe escorria pelos orifícios como um bife grosso na brasa: «Vou por cima, para a próxima vou por cima do túnel; mesmo arriscando três semáforos vermelhos ainda chego ao outro lado mais depressa do que se for por baixo a cinquenta.» Tinha 27 anos, essa idade para morrer, coitadinho, o que lhe faltava para os cinquenta.

Friday, June 15, 2007

Salto mortal

Era uma vez um fulano que foi dar um salto mortal e, claro, morreu. Seria de esperar outra coisa? Eu pessoalmente, quando vejo alguém dar um salto mortal e sair vivo, sob aplausos, numa tenda de circo ou num sarau de ginástica, sinto-me dominado por uma certa desilusão. Se quiserem, podem chamar-lhe salto arriscado, ou mesmo salto difícil como o caraças, ou salto que vocês queriam fazer e não conseguem porque é preciso uma preparação física que nem aos dez anos vocês tinham quanto mais agora que vão a caminho dos trinta; agora, peço desculpa aos ginastas e aos circenses, todavia salto mortal é para morrer e quem der um salto mortal e não morrer é, para mim, um xonhinhas do piorio.

Wednesday, June 13, 2007

Santos Populares no Inferno

Algo faz discutir a essência popular dos Santos Populares e as suas ligações ao cunho religioso, afinal falamos de santos. Ainda que a religião seja a coisa mais banal da humanidade, a cristã nunca me pareceu festiva – nem nos casamentos - nem dada a encher copos – sagrado vinho - nem a sardinhas e febras – maldita gula -; sempre desconfiei que isso das melhores coisas que há fossem ofertas do demónio, esse rufia boémio que se enfrasca nos nossos medos e se diverte com diversões evitadas pelos outros, que se alimenta do que nós temos medo de comer, sorri de tudo aquilo que achamos não ter piada.
E descer as ruas dos elevadores em direcção às praças cheias de gente e barulhos de música, artistas mascarados no palco, papéis e fitas e marchas num imenso carnaval barato, com a sensação de estar a andar para trás, de tão lento e penoso caminho, o carácter litúrgico da descida pelo trilho do elevador da Bica mesmo até lá abaixo, àquele pequeno inferno em nome dos Santos.
Terá Santo António sido expulso do céu como um anjo rebelado? Disseram-me que sim, há muito tempo numa esquina, onde um restaurante ainda existe e um dono chamado António, que quando estava bem disposto e fazia desconto nas bebidas chegavam mesmo a santificá-lo. Quando morrer, coitado, vai arrepender-se de tudo como nós ou viver numa descida ininterrupta até à festa.

Gelmir Isauruta, filho de Isurupta, filho de Irupta, filho de Puta

Sancho Frumblefoot of Scary, um rapaz-repolho vindo nas costas dos porcos alados das Montanhas Que Só Desciam, temia os poderes mágicos do grande mestre das cores mais escuras que preto, o temível senhor Lólondir Isilrá, que cuspia bocados de vómito misturado com o sangue dos Homens a quem comera as orelhas até aos tímpanos.
Sancho Frumblefoot of Scary, acompanhado pelo melhor amigo Boffin of Needlehole e pela sua Rosie-Posie Bramble of Willowbottom, subiu às Montanhas Que Só Desciam, onde os élfos plantavam rábanos nas margens do rio Daéron Culmano, cujas correntes eram sempre a favor dos caminhos a tomar pelos barqueiros de antanho, dividindo-se os cursos das águas como se dividem as estradas, umas num sentido e outras noutro.
Até que a meio do caminho para Nenhures Raivósorium de Alface, se ouviu o guincho cortante de Lólondir Isilrá, que de repente, só por si, cortou o pescoço com a mente a Boffin of Needlehole e a Rosie-Posie Bramble of Willowbottom, que transformados em pedaços de carne e sangue cairam ao rio e foram levados pela corrente, um em cada sentido. Sancho Frumblefoot of Scary sentiu os pavores dos Homens e do Élfos e dos Anões e de todos os seres pensantes e falantes das Terras Grandes de Alcácer de Valándil em simultâneo.
Das entranhas do desespero, detrás da Floresta das Arvores Ressuscitadas, surgiu Gelmir Isauruta, filho de Isurupta, filho de Irupta, filho de Puta, que disse para Sancho Frumblefoot of Scary: «Estás todo fodido, vai mas é para casa.»